Já faz muitos anos que não revejo o filme Mensagem para você (ou “Mens@gem para você”, segundo o cartaz original de 1998), mas eu penso nele com mais recorrência do que qualquer outro filme da era de ouro das comédias românticas de fins do século XX. É claro que um casal formado por Meg Ryan e Tom Hanks seria memorável por décadas e que, trabalhando com internet (seja lá o que isso significa em um contexto em que praticamente tudo passa pela conexão em rede), um romance entre desconhecidos que só tem o e-mail um do outro seria tocante de alguma maneira. Mas o que mais me leva de volta ao filme dirigido por Nora Ephron são as ocupações profissionais dos protagonistas.
Em 2009, dez anos depois da estreia do filme Mensagem para você, consegui meu primeiro emprego com carteira assinada. Fui chamada para compor a equipe de vendedores de uma livraria de shopping que eu frequentava desde a infância. Naquela época de miúda, não era incomum eu ficar sozinha na loja enquanto o adulto responsável resolvia coisas no shopping; eu folheava obras do setor de livros infanto-juvenis ou tentava montar um parque de diversões no CD-ROM de Sim Theme Park de mostruário. Foi naquela época, inclusive, que formei minha coleção de “O melhor do Menino Maluquinho” da PubliFolha, cada livro ganho em idas diferentes à livraria. Mas divago.
Fui chamada, naqueles primeiros momentos de vida adulta, para trabalhar em um lugar onde eu - supostamente - tinha muita intimidade com os produtos, com as prateleiras. Me alegrei, mesmo que trabalhar em shopping seja horrível (eu não conseguia ter nenhuma noção se fazia frio ou calor fora daquela grande caixa com lojas dentro; não sabia se ainda haveria sol quando eu batesse o cartão; tinha 15 minutos para comer e, claro, uma cretina escala de 6 por 1). Pelo menos eu trabalharia vendendo coisas que considerava importantes (livros, cadernos e agendas com ilustrações de Monster High).
A minha contratação fazia parte de um grande plano de expansão da livraria. Ela sairia de uma loja normal para uma loja gigantesca, com aberturas previstas em outros shoppings, em outras regiões do país. Em uma reunião, o dono da empresa avisou que a loja nova seria deficitária pelos 10 anos seguintes. E, mais importante do que isso, que deveríamos convencer os clientes a terem o cartão de crédito dela. Pra mim, tudo aquilo parecia uma grande loucura e me lembro até hoje de uma conversa com uma amiga que tinha sido admitida um pouco antes na livraria concorrente - que tinha o mesmo plano megalomaníaco. A gente não entendia como o modelo que os nossos chefes desejavam poderia ser financeiramente viável. Nós devíamos ser um pouco tapadas, não devia ser assim tão difícil de entender.
Quando alguém chegava até mim no horário de trabalho e me pedia um livro que não estava na loja, eu telefonava pro depósito, falava com o único funcionário de lá, e ele separava o livro para enviar para a loja. Se a cliente descobrisse que podia fazer isso em casa, um funcionário em um galpão resolveria o problema dela. Ao mesmo tempo em que eu percebia que algo estava mudando nos hábitos de consumo das pessoas a ponto de entender que eu era bastante prescindível, escutava o dono da livraria falando sobre seu ativo. Parecia evidente que vender livros ou barris de petróleo, para ele, significaria a mesma coisa. Pedi demissão no dia seguinte, no último dia do meu período de experiência.
Mensagem para você é um filme de comédia romântica ancorado no topos “de inimigos a amantes”, em que o dono de uma grande livraria - tipo aquela em que fiquei empregada dois meses - e a dona de uma minúscula livraria se apaixonam sem saber que são, na verdade, rivais nos negócios. O sonho do personagem de Tom Hanks é expandir sua livraria (a Fox Books) até o infinito, passando por cima de pequenos livreiros que possam atrapalhar seu projeto. A personagem de Meg Ryan só quer manter sua livraria infantil (a The Shop Around the Corner) em Nova York como um espaço de encontro, sustento e lembrança da própria mãe.
Eu penso muito nesses dois personagens porque acredito que a história que eles contam retrata muito bem algo que durou alguns anos entre o final do século XX e o começo do século XXI. Se tivesse sido feito uns 15 anos adiante (5 anos depois de eu ter pedido demissão), o personagem de Tom Hanks estaria como os donos das mega-livrarias de São Paulo: devendo a pequenas editoras, sofrendo processos trabalhistas, completamente devastado pela emergência da Amazon (ou, otimistamente, pela descoberta dos leitores de que é possível comprar os livros direto do site das editoras). Devorado por um capitalismo mais voraz do que o seu próprio.
Hoje, a The Shop Around the Corner se parece com tantas livrarias de rua que pipocaram por São Paulo nos últimos anos (pra não mencionar os sebos tão fundamentais na nossa cultura literária). Livrarias em que você consegue saber se está chovendo do lado de fora, o nome do livreiro que te atende, que oferecem eventos de lançamento e conversas sobre os temas que os livros tratam. Às vezes me pergunto se o cinema não tem trilhado um pouco esse caminho também. Com a estafa que anos de filmes de super-heróis nos cinemas de shopping, os preços altos dos ingressos, a explosão dos serviços de streaming e algumas discussões à la Retratos Fantasmas sobre o direito à cidade e ao cinema, espaços pouco ortodoxos, como bares, têm exibido filmes com recortes específicos, tanto lançamentos recentes quanto clássicos de outras décadas, de outras culturas cinematográficas.
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▶ Foi meio que junto: Érico Assis recomendou o livro Deusas do Rock na mesma semana em que fui convidada para trabalhar em um festival de rock no interior do estado. Comprei o livro e embarquei pra uma viagem de sete horas de ônibus. Voltei dessa experiência com uma playlist de cinco horas e meia com algumas músicas de cada artista citada no livro.
▶ Mês passado, o texto “carta para a amizade que perdi” que publiquei nesta newsletter fez um sucesso acima do normal pros padrões. Por conta disso, quis trazer dois textos pra cá que falam sobre termos menos amigos hoje em dia. Infelizmente, ambos são em inglês. O primeiro é The Friendship Dip - The loneliest decades are not what you think they are (O declínio da amizade - As décadas mais solitárias não são as que você pensa, em tradução livre), sobre a dificuldade de ter amigos próximos quando temos entre 30 e 40 anos. Já em Aren’t You Lonely? - Friendship has become another joyless thing to do on a screen (Você não se sente solitária? Amizade se tornou mais uma coisa desestimulante a se fazer em uma tela), o foco é nas gerações que vieram depois da minha e que não deviam se sentir com tão poucos amigos assim.
▶ Estou na minha incursão sempre um tanto obsessiva em Jogos Olímpicos que acontece de quatro em quatro anos. Mas também peguei o hábito de jogar um novo joguinho de palavras. Descobri que o G1 tem um espaço no seu site de Jogos Coquetel (aquela marca de revista de palavras-cruzadas). Sempre que preciso ficar numa fila, numa sala de espera ou pegar uma senha para ser atendida em algum lugar, é no Soletra que eu gasto meu tempo ocioso. Todos os dias tem um novo desafio com 7 letras a serem combinadas por lá.
Eu penso muito nesse filme também. Queria que fizessem a versão atualizada 30 anos depois, Meg Ryan autora de livros infantis, Tom Hanks afundado em dívidas da Fox Books. A nova protagonista é a irmãzinha dele que depois de um burnout no trabalho abre uma pequena livraria de bairro em formato de banca e se apaixona por um startupeiro que vê potencial no negócio e fica dando uma consultoria não solicitada.
Adorei. Tem uma ironia no universo que faz o melhor filme da Meg Ryan ser com o Billy Cristal e não com o Tom Hanks.