ser mutável, cena de liberdade e sem palavras
Era normal que ele me criticasse por mudar muito. Às vezes essas críticas reaparecem na minha cabeça, dando razão a ele. Eu nunca consigo explicar muito bem quem eu sou ou o que eu faço. Quem eu sou ou o que eu faço varia um bocado dependendo da semana do mês, do período do ano, da pessoa com quem estou conversando. Às vezes eu acredito que nunca serei boa em nada se tudo o que me interessa me interessa demais. Pode parecer incoerência, confusão.
Quando eu era mais nova, seguramente sofria mais com isso. Experimentava coisas diferentes com a fotografia e os textos, que são as duas maiores constantes da minha vida, pensava em tudo o que eu queria estudar e não teria tempo, me questionava se, sendo assim, algum dia eu seria capaz de ter um trabalho.
Conforme o tempo passava, eu fui percebendo que essa junção de gostos e interesses não era sintoma de eu não saber quem eu era. Na verdade, essa junção é exatamente quem eu sou. E o que parece incongruência é a parte mais coerente de mim: estou de alguma forma sempre em busca de enxergar o que há por trás, o que faz com que algo exista ou aconteça. Talvez por isso os lugares em que me senti mais confortável foram a coxia de um teatro, atrás de uma câmera, uma oficina de bicicletas, diante de papeis na minha escrivaninha.
Fui ao mercado essa semana, e, enquanto esperava a funcionária responsável pelo setor de frios cortar e pesar o queijo que pedi, percebi em um canto uma frase. Algo sem muito sentido e que mal me lembro agora. Algum estímulo sobre pão ser bom a qualquer momento do dia. Pensei em como somos viciados em palavras. De tal forma que, até onde não precisa haver um parágrafo, certamente alguém o colocará ali, em uma esquina de mercado ou em alguma camiseta de fast fashion.
Por mais que as palavras sejam o meio elementar da nossa comunicação, percebi que o meu interesse por escutar e conhecer músicas sem versos tem crescido nos últimos tempos. Talvez justamente pelo excesso de palavras que me acompanham todos os dias. Da mensagem motivacional no mercado aos ambulantes nos trens do metrô, passando por toda sorte de impossibilidades de ficarmos quietos quando estamos com outras pessoas (demandas de trabalho, incômodos com o silêncio, vontade de contar alguma nova descoberta).
Mais de uma vez no ano passado recomendei aqui vídeos, livros e filmes que tinham a canção brasileira como mote ou pano de fundo (como neste e neste textos). Mas, olhando para a playlist que criei para botar as músicas sem letra que mais tenho gostado - música instrumental e música de concerto, com qualquer coisa entre Hermano Gutiérrez, Ryuicho Sakamoto e Aphex Twin - queria dessa vez deixar dois musicistas brasileiros que têm me acompanhado quando não quero ninguém falando comigo: Gabriele Leite e Amaro Freitas.
Gabriele é violonista, nascida no estado de São Paulo, e lançou há poucos meses seu primeiro álbum, chamado Territórios. Já Amaro se dedica às teclas (piano, teclado), nasceu em Pernambuco e está em seu terceiro álbum, o Sankofa, lançado em 2021 pelo selo inglês Far Out Recordings.
Amaro Freitas é absurdo demais <3