as histórias e as coisas
A vida pessoal e social de alguns objetos com os quais convivi
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Brinquei que minha personalidade foi alterada de segunda para terça da semana passada, quando eu finalmente aposentei minha mochila após 13 anos de uso. Pela segunda vez, percebi seu fundo começando a rasgar e achei que agora não valeria a pena pedir (novamente) para um sapateiro reforçar a costura. O cordão que a fechava já não tinha elasticidade e outro rasgo começava a se concretizar no zíper principal. Nos últimos 13 anos, as pessoas do meu convívio certamente me viram chegando a todo tipo de rolê com minha quase inseparável mochila de trilha (mesmo que o meu trajeto seja totalmente urbano). Nesses anos todos ela ganhou minha preferência por atender necessidades básicas do meu dia a dia. Tinha espaço suficiente para carteira, celular, livro, chave, câmera fotográfica, guarda-chuva, uma blusa leve e garrafa d’água. Mas ela também representava algo muito importante para mim: foi um presente que meus colegas de trabalho me deram ao final de um estágio num órgão público. Um lugar onde aprendi bastante e conheci pessoas incríveis. A mochila me deu, esse tempo todo, materialidade para algo que era uma experiência presa no passado. Ela, secretamente, me balbuciava minha história.
2
Alguns meses atrás pensei em vender uma câmera fotográfica que não uso há muito tempo. Quando uma conhecida se mostrou interessada, mudei de ideia. Pedi desculpas. Não ia conseguir mais vender a câmera. Me lembrei de que eu comecei a usá-la depois da morte do meu avô, pois a encontrei entre as coisas dele. Meu avô possuía um bocado de tralhas: gravadores de fita, ferramentas repetidas, enciclopédias, dicionários, revistas com k7 que prometiam ensinar línguas estrangeiras. Usada à exaustão nos primeiros anos após sua morte, hoje fica numa caixa dentro de uma gaveta, mantida como se fosse uma relíquia, um vínculo entre nossas duas vidas. Para mim, uma espécie de lápide, já que nunca mais fui ao cemitério onde o enterraram. Para alguém no futuro, talvez apenas uma tralha.
3
Eu me lembro de quando trabalhava com acervos culturais, da minha chefe avisando a gente de que em caso de incêndio ou abordagem violenta, devíamos pensar em salvar nossas vidas, não o material do arquivo. É meio óbvio, mas valia o lembrete. Os itens guardados nos acervos tornavam-se materiais de pesquisa para nós e ganhavam uma importância gigante nos nossos cotidianos. O incêndio no Museu Nacional era algo ruim em si, mas quando eu imaginava que eram acervos estudados por pessoas a perspectiva ficava ainda pior. É muito complexo entender o quanto uma coisa pode significar para uma pessoa, para um povo, para a Humanidade. O quanto de simbolismo pode ser encapsulado em papéis, pedras, metais e, ao mesmo tempo, significar muito - quase tudo - para uns e pouco - ou até nada - para outros.
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▶ Há duas motivações para a minha vontade de escrever sobre “coisas” e acervos em chamas nessa semana. A primeira delas foi ter terminado de ler Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, que ganhei de uma amiga há um tempinho. Publicado originalmente em 1953, o texto é uma ficção científica em que bombeiros existem para botar fogo em livros - itens proibidos, causadores de muitos distúrbios e pensamentos incômodos. Escrito na rebarba do trauma da Segunda Guerra Mundial e vinte anos depois da grande queima de livros pelos nazistas, eu já conhecia a história pelo filme de 1966 feito por François Truffaut, mas ainda assim fiquei impactada por ela. A segunda motivação foi ter voltado a pensar em outro livro que fala sobre a vida dos objetos: A vida social das coisas foi organizado por Arjun Appadurai em 1986 e traz vários textos com perspectivas antropológicas sobre como diferentes grupos humanos lidam com objetos, suas trocas e circulações.
▶ Mudando completamente de assunto, tenho ouvido bastante o álbum novo da Beth Gibbons, Lives Outgrown. Antes disso, minha única aproximação com Portishead - banda da qual ela é vocalista - tinha sido quando um amigo da escola me mandou a música Wandering Star em mp3 pelo MSN, gostei muito, começamos a namorar, terminei por carta duas semanas depois. Impressionante como ser adolescente é patético.
▶ Estou participando de um concurso de fotografia analógica no instagram. O prêmio são quatro filmes e uma câmera, e, pra ganhar, a minha foto deve ter mais curtidas que as outras. Corro o risco de ganhar, mas pra isso tô precisando de alguma ajuda lá. Desde já, muito obrigada :))
tenho uma mochila velha de guerra e entendo muito o seu apego. o couro já descascou completamente, mas ela continua firme e servindo ao propósito, além de ter muitas histórias pra contar.
Coisas são lembranças com toque do que vivemos. Eu gosto de guardar algumas saudades materializadas.
Um beijo.