Tento descobrir se ela está viva. Não tenho muitas informações a seu respeito. Descobri sua existência com assinaturas singelas em cartas manuscritas e datilografadas em um arquivo. Alguém me confirma: está viva, muito doente, mas aqui está o número do telefone de sua casa. Vou a um café perto do trabalho, digito os números, não sei bem o que falar. Uma pessoa atende o telefone, pergunto por ela, a resposta é a de que ela está no hospital. Mas que eu tentasse ligar nos próximos dias.
Telefono outro dia, ela está de volta para casa, me informa a mulher do outro lado da linha. Debilitada, mas disposta a me atender, eu, uma pesquisadora de sua obra. Pego o endereço, marcamos dia e horário. O frio na barriga se expande pelo corpo todo. Lembro-me de me dizerem: “ela é difícil”. Mas, como assim, difícil? Difícil como? Ela não vai abrir a porta no dia? Ela não vai me tratar bem? Ela não vai gostar de mim? Difícil como? Mais difícil do que eu, será?
Cheguei no dia e no horário marcados ao sobrado numa rua estreita no bairro dos Jardins. Não planejei gravar o encontro. A situação da saúde dela parecia delicada e minha maior vontade era a de contar à mulher cujas cartas para um amigo eu tinha acessado nos anos anteriores que agora eu tinha interesse em estudar sua trajetória. Se ela achasse conveniente, poderia me contar coisas que me ajudariam nesse percurso. Quando cheguei à casa, a cuidadora me recebeu, pediu para que eu subisse as escadas, me acomodou em uma cadeira no ateliê da artista que ficava à direita ao fim da escada e ali a aguardei.
Tudo parecia muito ordenado aos meus olhos. Algumas telas, fotografias. Um armário com pigmentos em vidros transparentes. Me encantei com a claridade que vinha da janela, e com o silêncio da rua em um bairro nobre da cidade. Com auxílio da cuidadora, a artista que na época tinha 91 anos sentou-se diante de mim. Contei a ela do meu projeto de pesquisa, que começara quando eu catalogava documentação em um arquivo na universidade, uma história que começara cinco anos antes. De um modo um pouco protocolar, ela começou a me contar sua história a partir da vinda para o Brasil aos 10 anos de idade para que a mãe assumisse uma função de destaque no desenvolvimento da Psicanálise em São Paulo. Ela foi me contando sobre sua trajetória, até que falou:
- Eu queria fazer análise em alemão, mas em São Paulo todos os psicanalistas que atendiam nessa língua eram subordinados a mamãe. Acabei tendo que ir para o Rio de Janeiro. Queria saber se eu era neurótica, porque não queria ter filhos. Você entende?
- Sim, eu não tenho vontade de ter filhos. Tenho 27 anos e algumas amigas desejam muito. Nunca aconteceu comigo.
- Eu também tinha 27 quando aconteceu isso!
O rosto dela se iluminou de um jeito novo, como se ela me visse como alguém que entendia algo que muitos não entenderam. Como se eu a entendesse profundamente. A partir dali, a conversa percorreu seus caminhos com mais leveza. Ela me contou dos anos em que trabalhou como tradutora para a polícia inglesa, quando mudou do Brasil pois o clima lembrava um pouco a hostilidade da Alemanha nazista de onde haviam fugido. Contou sobre as negativas que recebeu da Bienal de Arte, sobre seu mecenas na Inglaterra, dos trabalhos que desempenhou como cenógrafa de teatro, dos seus aprendizados com o pintor Alfredo Volpi. No lado oposto da sala, entendi que o armário com portas de vidro e grande quantidade de pigmentos de diversas cores organizados em potes remetia à técnica de têmpera que aprendera com o pintor do Cambuci.
Meses depois, no dia em que Eleonore Koch morreu, eu ia à Pinacoteca para uma aula e, depois do almoço, aproveitei para passar na exposição que o museu fazia à época e que tinha algumas de suas obras. Quando conversamos, ela tentava organizar o que restava de sua vida e o que seriam de seus espólios quando morresse. Li no jornal que ela havia pedido que suas obras fossem leiloadas e o dinheiro obtido daí deveria ser dividido entre o guarda que trabalhava em sua rua, sua cuidadora que me atendeu e uma associação de amparo a gatos abandonados. Anos depois, ela teve uma seção só sua na Bienal de Arte de São Paulo.
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▶ A vontade de contar sobre essa visita à artista Eleonore Koch na época do meu mestrado veio depois de assistir ao documentário de Jorge Bodanzky sobre ela, chamado As cores e os amores de Lore e que chegou esses tempos a algumas salas de cinema do país. Em breve chegará aos cinemas Virgínia e Adelaide, com direção de Yasmin Thayná e Jorge Furtado, que conta a história da mãe de Lore, Adelheid Koch, e de Virginia Bicudo, duas pioneiras da Psicanálise no Brasil.
▶ A menos que você seja um dos astronautas preso na Estação Espacial Internacional desde junho de 2024, suponho que já tenha ouvido o novo do Bad Bunny. Mas eu quero deixar aqui uma recomendação do velho do músico porto-riquenho: El Apagón - Aquí Vive Gente é um curta-metragem documental sobre a exploração em sua terra natal. O videoclipe trata do aumento dos preços dos aluguéis, da proibição velada dos pobres da ilha às praias, da negação ao direito básico à moradia. Temas que me preocupam em São Paulo, onde moro, e que achei interessante como o maior cantor do momento decidiu abordar (dando voz a lideranças locais de bairros tipicamente marginalizados). Mas não se trata exatamente de uma novidade para quem prestou atenção em DtMF e nos usos que populações obrigadas a abandonar suas terras por conta de ações militares israelenses fizeram da música.
Me enrolei para ver o documentário do Jorge e acabei perdendo. Ainda bem que você trouxe essa história fascinante. Abraço.