Nas férias, em minha última refeição em Milão, feita na estação de trem à espera de embarcar para Gênova, a garçonete botou diante de mim um jogo americano de papel em que se lia: “‘Não se pode pensar bem, amar bem, dormir bem, se não se come bem’ - Virginia Woolf”. Achei graça na hora, imaginei a senhora Dalloway dizendo que ela mesma vai comprar a marmita. Pensei logo na frase “Uma cozinha toda sua”, sem saber que se tratava exatamente de uma citação do clássico feminista de Woolf, o Um teto todo seu. Não tardou muito para que as piadas mentais fossem substituídas por um pensamento a me assombrar: “Uma cozinha toda sua”.
Parece besteira, mas demorei para ter essa cozinha toda minha. Muito antes já tinha conseguido um quarto onde pudesse escrever, ficar em silêncio, um espaço onde meus textos e meus estudos brotavam e se aprofundavam. A cozinha, porém… Aprendi a cozinhar cedo, não me entendam mal. Aos 11 anos de idade, com minha avó ao telefone, consegui fazer minhas primeiras panelas de arroz e de feijão sozinha em casa. Aos 13, peguei no flagra meu cachorro em cima da mesa comendo o macarrão com molho branco que eu tinha acabado de preparar. Mas, apesar de me aventurar a eventualmente cozinhar para outras pessoas, as cozinhas nos lugares onde morei sempre tinham donas, proprietárias talentosas, que usavam seus empenhos culinários para alimentar os outros (eu, dentro desse conjunto de cuidados).
Eu visitava esse espaço, pedia permissão para participar. Muito mais responsável por lavar as louças do que por cozinhar, seguindo a regra primordial das boas práticas culinárias, a de que quem cozinha não lava a louça (portanto, quem não cozinha, já bota o avental). Sempre como ajudante, eu morria de vergonha das minhas produções próprias. Pareciam pouco caprichadas, nada apetitosas. Me acostumei a cozinhar pequenas porções de meus pratos pouco elaborados.
A cozinha - sobretudo no Brasil - tem muitos estigmas. Do lugar de um trabalho doméstico altamente exploratório herdado do período escravocrata (e, por isso, marcado por distinções de classe e de raça) às performances de gênero de esposas, mães, donas-de-casa, esse cômodo do lar é possivelmente o que mais escancara desigualdades com as quais lidamos todos os dias. Por outro lado, para aqueles que já conseguiram superar essas contradições, a cozinha é um lugar bom, de encontros, de segredos contados amiúde, de transmissão de conhecimento entre diferentes gerações.
Saber cozinhar é um jeito de se emancipar. Eu sabia que precisava aprender os códigos da cozinha e arriscava receitas em viagens, em alojamentos estudantis, em albergues cheios de turistas. Cozinhas coletivas, sem nenhum dono cuja opinião eu receasse. Fui me conhecendo melhor nesses lugares, percebendo o quanto a ansiedade me atrapalhava. A vontade de terminar logo o processo fazia com que não só eu o detestasse, como também chegasse a resultados pífios. Eu era a apressada que comia cru.
Com medo de que minha presença na cozinha atrapalhasse ou então que parecesse que eu disputava um talento (que sentia que não tinha), evitava cozinhar receitas longas, trabalhosas. Dava razão à ansiedade. Comia refeições pouco saborosas supondo que não “nasci” para isso. Para não dizer que eu não soubesse cozinhar, me especializei em uma receita de cookies (e sua versão vegana) e outra de brownie. Eram praticamente impossíveis de errar.
Faz poucos anos que decidi fazer receitas mais complexas. Descobri, assim, que não sou uma negação na cozinha. Me permiti errar na esperança de que algo eu pudesse aprender com esses erros. Aprendi a ter paciência, a entender consistências, a abrir a geladeira e achar soluções dentro dela. Passei a investigar receitas, a compartilhar os bons resultados delas com pessoas que eu amo. Descobri que ter somente um quarto todo meu era, de fato, insuficiente.
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▶ Enquanto escrevia esse texto, lembrei-me de uma das salas do Museu Paulista, que a gente de São Paulo em geral chama de Museu do Ipiranga. Com a reabertura dele em 2022, uma parte da exposição de longa duração é dedicada a cozinhas paulistas. A sala se chama Casas e Coisas e é fruto de pesquisas do Grupo de Pesquisa Espaço Doméstico, Corpo e Materialidades da Universidade de São Paulo. Os relatos de empregadas domésticas e donas de casa contando suas memórias nesse espaço são um ponto forte da exposição, ao escancarar histórias que ficam soterradas pelos ditos “grandes eventos”.
▶ Não é raro que eu peça assistência a minha amiga Seane em minhas recentes investidas culinárias. Principalmente porque decidi cultivar uma isca de fermento natural na minha geladeira. O novo livro digital dela, chamado Migalhas, me pegou muito porque li logo depois de voltar da viagem em que li a frase de Virginia Woolf. Tem ghosting de paquera, tem receitas de panificação com levain e tem um pouco de trauma sobre ser uma visita na própria casa. Recomendo muito.
▶ Por fim, apesar de 9 em cada 10 padeiros amadores desenvolverem suas receitas de pão italiano com casca dura e alvéolos aerados dentro, eu sou fã de pães mais fofinhos. A receita que mais fiz em 2024 foi de brioche de um canal do YouTube chamado Autumn Kitchen. Massas que vão gordura (óleo, manteiga) demoram mais para crescer, mas acho que compensa. Fez muitas vezes a minha alegria no café da manhã e no lanche da tarde no trabalho.
Curiosidade do dia: Um teto todo seu de Viriginia Woolf acaba de entrar em domínio público este ano.
Nem preciso falar o quanto me identifico com todas essas reflexões. Muito bom reconquistar a cozinha do nosso jeitinho 🥰