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O mundo era um lugar misterioso e eu apenas uma criança. Eu devia me comportar bem porque a qualquer momento o céu se tornaria uma nuvem de fogo e o juízo final começaria à revelia dos meus compromissos cotidianos. Estávamos perto dos anos 2000, o Anticristo ia aparecer e era bom que minha alma não estivesse contaminada com nenhum pecado. Crescer entre o Bug do Milênio, as tresloucadas versões de profecias de Nostradamus e a figura de Darth Maul no primeiro episódio de Star Wars favoreceu para que o meu imaginário se preenchesse com a presunção de um fim do mundo iminente. A herança que me era passada em vida, a da neurose católica de quem espera a salvação num mundo de privações, contribuiu significativamente para isso. Dividida entre o medo de que uma lagartixa caísse do teto sobre mim ou que o Anticristo se materializasse enquanto eu tomava banho, pedi para minha mãe ficar no banheiro aquela noite. O que a vovó andou te falando? Não contei. Mas era exatamente isso. Que o papa seria substituído por uma figura maligna que construiria um caminho para o domínio do mal e, só depois e às custas de muito sofrimento, o bem poderia vencer. Eu só queria poder acordar no dia seguinte e ver meus desenhos. Eu detestava que o tempo fosse algo finito, prestes a terminar. No fundo, o fim do mundo era o fim do tempo numa concepção linear dele.
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Trabalhei por alguns meses ao lado de um prédio abandonado em São Paulo. Um dos mais famosos prédios inacabados da cidade. Começou a ser construído nos anos 1960 para ser uma garagem vertical, que nunca foi concluída. É uma construção com tijolos à mostra, paredes incompletas. Eventualmente, pessoas se escondem ali, um abrigo contra a chuva e o frio em uma cidade hostil. Uma cidade com edifícios-garagens abandonados e moradias populares preteridas. Mas de todas as coisas que cercam esse prédio, a que me chamava mais a atenção era o mamoeiro em seu último andar. Outras plantas crescem por entre o concreto deteriorado pelas condições climáticas. Mas o mamoeiro! Ele me obrigava a pensar em todo seu trajeto até ali. Um caroço deglutido por um pássaro que, voando, defeca sobre um esqueleto de cimento nas imediações da Sé. Um caroço que triunfa, sabe-se lá como. Encontra um substrato, tem luz o dia inteiro, acumula água em alguma deformação do telhado do prédio. Ali em cima, brotam mamões que talvez outros pássaros já tenham descoberto. Enquanto abaixo do mamoeiro um prédio parece estar perto de colapsar, as plantas me ensinam que o tempo é círculo muito mais do que linha.
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Chega um momento da vida em que poucas coisas se mostram como novidades. O mundo não é mais tão misterioso e quase nada surpreende as almas com mais de trinta anos de idade. As notícias parecem repetidas, é cada vez mais fácil entender a estrutura de uma novela na televisão ou de um filme em cartaz no cinema. Mesmo quando as pessoas ao redor tomam atitudes estranhas não há nada que possa nos espantar: o ser humano é mesmo surpreendente e não existe mais surpresa nisso. Um período de paz se assemelha a outros períodos de paz - uma suspensão atípica na atmosfera, mais do que o sossego entre as nações. As guerras se assemelham em seus métodos, mesmo que com inovações tecnológicas. Quando abro os olhos e te vejo dormindo, é igual a todas as outras vezes que dormimos juntos. E se passo minha mão no seu rosto, o sorriso que se espalha ali se parece com sorrisos de outras manhãs. Mas o que aconteceu no dia anterior, na outra semana, no mês passado certamente nos mudou. Pode ser que hoje eu te ame mais ou te ame menos, pode ser que não entenda por que te amo, ou posso ter a mais absoluta certeza do meu amor. A mão, o sorriso, a noite, a cama, a gente. Tá tudo igual. E eu sinto tudo diferente. Para nós, o tempo é uma espiral; as coisas se repetem sem serem nunca as mesmas de outrora.
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▶ Não sou pessoalmente apegada a algum gênero cinematográfico específico, mas curiosamente nas últimas semanas assisti a um bocado de produções não-ficcionais. O Cinelimite havia disponibilizado a versão que eles restauraram de Eunice, Clarice, Thereza (1979), filme dirigido por Joatan Vilela Berbel. O filme não está mais disponível online, mas recomendo fuçar o material que eles mantêm no canal do YouTube da iniciativa.
▶ Na mesma semana, aproveitei um horário de almoço preguiçoso de sábado para ver Retrato de Classe (1977) de Gregório Bacic. Produzido originalmente para ser exibido na televisão (dentro do Globo Repórter, da Rede Globo), o documentário parte de uma foto de turma de escola particular do bairro paulistano de Vila Mariana tirada em 1955 para reunir, 22 anos depois, os alunos e a professora. É um retrato de classe, mas não escapa de ser um documento sobre gênero e raça a partir dos depoimentos daqueles adultos.
▶ Aproveitando o ensejo, deixo a indicação de outro curta documental. Dirigido por Camila Kater, Carne (2021) apresenta cinco histórias de mulheres que contam sobre a relação que desenvolveram com seus corpos, desde a infância até a velhice. O que chama mais a atenção nesse caso, são as escolhas visuais que Camila faz ao usar técnicas de animação para introduzir cada uma dessas histórias.