suspender o real, fim de tarde e a longa duração da guerra fria
Estou parada num ponto de ônibus num sábado à noite. Ali, três ônibus me servem. Um me leva para o terminal de onde sai o caminho para casa. Outro me leva direto para casa, mas o ponto em que desço fica na avenida, rodeada de árvores, mal iluminada, um pouco deserta à noite (descarto logo; às mulheres cabe sempre confiar nesse tipo de conhecimento que chamamos intuição). O terceiro me leva para um caminho de diversões, bares que conheço, salões que nunca frequentei, festas que me interessam. Escolho não decidir. Dos dois ônibus que restaram na competição, o primeiro que chegar selará o destino da minha noite. Espero. Uma mulher serve bebidas alcoólicas num carrinho, a quermesse da igreja começa a se esvaziar, vejo o fluxo de pessoas saindo de lá.
Um homem vem em minha direção. Desvio. Ele se desloca pro mesmo lado que eu, diz que nossos caminhos se cruzaram por uma razão. Ele vende balas, digo "hoje não quero, obrigada". Ele se irrita um pouco, paciência. Passa um ônibus que não me serve e o seguinte é o que garante o prolongamento da minha noite. Dá mais ou menos uma hora de viagem, mas tudo bem. Eu realmente quero sair para dançar.
Decido ir a um lugar que não conheço e onde não deve ter conhecidos (em prol da fidelidade dos fatos, reconheci um rosto na pista de dança, fingi que não). Eu danço um pouco ridícula, levanto os braços, invento passos. No balcão, pedi uma garrafa d'água; certeza de que na pista alguém considera que não se trata só de água na garrafa. Não me importo. Dançar é suspender o real.
Reconheço poucas músicas, mas a sequência do dj me anima. Tudo que eu preciso de vez em quando é suspender o real. É dançar como se ninguém estivesse me vendo, é esquecer um pouco de tudo. O lugar mais importante é ali, na pista de dança. Outro dia pensei nisso dançando forró. É muito diferente, claro, de um ambiente dominado pela batida eletrônica. No forró não se dança como se ninguém estivesse vendo: antes é preciso "ver" os movimentos do corpo. Os códigos corporais. Oferecê-los, lê-los, interpretá-los. Com quem você se propõe a percorrer a pista. De qualquer modo, suspende-se o real. Nada existe que não aqueles corpos empenhados em ser ritmo e balanço.
Trabalhar presencialmente todos os dias mas morar a poucos quilômetros do escritório tem comprometido meu hábito de leitura. A baldeação fica a poucas estações, a maior parte do percurso faço andando pelas ruas. Apesar de um pouco frustrada porque desde a faculdade me habituei com o transporte público como um grande aliado da leitura na minha vida, migrei para podcasts.
Foi em 2016 que comecei a consumir essa mídia com regularidade. Foi por essa época também que defini meu gosto pelos formatos (sou muito reticente, por exemplo, a mesacast, os tais dos podcasts de “papinho”). Tenho alguns jornalísticos entre meus favoritos e, pouco tempo atrás, “devorei” Wind of Change. Conseguia escutar metade de um episódio na ida e metade na volta do trabalho. Um encaixe perfeito.
O podcast investiga uma história de que a música Wind of Change da banda de rock alemã Scorpions foi escrita pela CIA, num esforço de conquistar almas, corpos e corações para o lado estadunidense da Guerra Fria. Partindo de uma teoria da conspiração, o jornalista Patrick Radden Keefe vai atrás de espiões, empresários da indústria da música, o líder da banda.
Um dos pontos altos da série é aquele em que o apresentador pede um posicionamento da CIA sobre essa história e recebe como resposta da agência que ela se preocupa em assuntos de inteligência estrangeira e não com atuação cultural. O cara fica bem irritado por ser tirado de ingênuo por quem escreveu a nota, usando o filme Argo que ganhou o Oscar em 2013 como uma história de exemplo de atuação cultural da CIA. Mais adiante, ele é confrontado com a pergunta sobre se seu podcast não seria mais um caso de propaganda pró-América; ou, mais malucamente, pró-Rússia, que também se interessa bastante na difusão de teorias da conspiração envolvendo seu país arqui-inimigo (belíssima obra para enxergar a longa duração da Guerra Fria; afinal, acabou?).
O podcast é em inglês, mas para quem manja um pouco da língua, no site, todos os episódios têm transcrição. Fica mais fácil de entender acompanhando a transcrição, embora seja um jeito pouco prático de consumir o programa.
Também era uma leitora de transporte público e desde 2020 vou pro trabalho a pé. Demorei uns bons anos pra encaixar a leitura na (nova?) rotina, mas acho que finalmente consegui. Nunca me acostumei com os podcasts, embora tenha gostado de alguns. Mas, lá vou eu escutar “winds of change” pq nunca me decepcionei com recomendação sua. Valeu!