sobre a dor da [quase] morte
“O fato de não se morrer de enxaqueca, para aquele que experimenta o auge de sua crise, soa como uma bênção ambígua.”, escreveu Joan Didion
Uma experiência de quase morte. Acordo por volta das 3h da manhã, desesperada. Minha cabeça em chamas, sendo prensada por coisa nenhuma. A dor de cabeça de horas atrás se transmutou durante meu sono e se converteu em uma enxaqueca galopante. Sinto a cabeça deformada, como se fosse uma bola murcha, com o amassado pra dentro convergindo para a região do meu olho direito. Ainda sonolenta, tento entender o que está acontecendo, o que está ao meu alcance fazer. Tento entender a dor. Meu sangue pulsa dentro da minha caixa craniana. Um caminhão estacionado no outro quarteirão parece estar dentro da minha casa. Tudo é confuso, pensamentos e sensações parecem presos num redemoinho. “Morrer deve ser assim”.
Encontro o último paracetamol da casa, engulo-o com a água da garrafa que repousava ao lado da cama. Passo alguns minutos fingindo não perceber o que está acontecendo. Não é a primeira noite que sou acometida por uma dor assim. Embora não seja habitual, é a segunda vez nesse ano. Considerando o fato de que Joan Didion certa vez escreveu que tinha crises de enxaqueca cerca de cinco vezes ao mês, me sinto quase uma sortuda. A solução final é sempre a mesma. Arrasto-me até um banheiro, sento diante do vaso sanitário e induzo meu corpo a vomitar. “Imagina, morrer aqui, agora”.
A sensação é horrível, de tudo. Da dor que me impede de acender uma luz e que deixa os sons da cidade lá fora acentuados até a parte de lavar as mãos e a boca, esperando que o remédio totalmente orgânico funcione. Costuma funcionar. Por muito tempo achei que essas noites atribuladas vinham de um problema no aparelho digestivo, uma repulsa a algo que comi, informado pelo estômago à cabeça. Fui percebendo que não, a ordem é justamente a inversa. “E se eu souber desde já do que vou morrer um dia?”.
A dor é, certamente, o que me leva a sentir essa como uma sensação quase fúnebre. Mas há outro elemento que não me escapa. A solidão da situação. No meio da noite, sozinha, condenada ao escuro, à busca desesperada pelo protetor auricular de silicone, pela garrafa de água, pelo paracetamol restante, caminhando até o banheiro, um vazio completo em tudo, quase 4h da manhã. Ninguém para me amparar. Morar só, nesse caso, é uma situação ambígua. Afinal, quando tive esse tipo de crise morando com outras pessoas, arrastava-me aos remédios e ao vaso sanitário descalça, no escuro, fazendo o mínimo de barulho possível. Resolvia tudo o que podia naquelas horas de madrugada. Era solitário da mesma maneira; não há quem acuda pois não há quem pede ajuda.
Mas, nas manhãs seguintes, é sempre igual. Encontro um interlocutor a quem eu conte as peripécias da madrugada como se contasse um sonho repleto de aventuras: “Você não sabe, achei que ia morrer, mas vomitei às 4h da manhã e agora tá tudo bem”. Como se viver fosse finalmente bom e valesse à pena.
+
▶ Ano passado, para me recuperar de um romance que li e detestei, emendei dois livros de Joan Didion. O ano do pensamento mágico e Noites azuis contam, respectivamente, as histórias das mortes de seu marido, John Gregory Dunne, e de sua filha, Quintana Roo Dunne. Posterguei essas leituras para momentos em que eu não estivesse sofrendo, pois, claro!, são textos difíceis pelo tema que abordam. Os livros falam sobre morte, mas também sobre parceria, amor, maternidade, sobre pesquisas científicas que tentam entender o que o fenômeno “morte” causa na gente que fica. Eu gosto muito do jeito como ela escreve, de enxaquecas a longos períodos de luto, de uma forma simples e ao mesmo tempo complexa.
▶ Há mortes sobre as quais eu não consigo escrever. A de Rita Lee, por exemplo. Recebi a notícia no trabalho, chorei quieta, queria ir embora, sentia como se tivesse perdido uma tia querida. Uma tia que em um momento turbulento da minha vida me dissesse “é um grande barato ser quem você é”. A morte do Ziraldo é mais ou menos assim pra mim, porque, sim, eu aprendi a ler por conta de Mauricio de Sousa, mas foi com Ziraldo que eu aprendi a gostar de ler e de escrever. Com a morte de sua esposa Vilma Gontijo em 2000, Ziraldo escreveu o livro Menina Nina - Duas razões para não chorar. As ilustrações têm seu traço característico, mas a história conta para sua neta Nina que a Vovó Vivi foi dormir para sempre. Eu devia ter dez anos quando o ganhei e ele segue na minha estante. Apesar de ter no título “duas razões para não chorar”, devo ter chorado sempre que li. Mas eu não sei se há um livro mais sensível na hora de contar sobre a morte de alguém querido para crianças (simplesmente a Joan Didion dos infanto-juvenis).
Eu choro sempre que leio Flicts, a solidão assistida me dá mais angústia que a morte. Mas choro com a morte? Também. Não estou preparada para ler nenhuma de suas indicações no momento. Por mais que eu queira bastante.
comecei meio perdida e terminei completamente emocionada. foi de uma sensibilidade incrível a forma que você abordou o tema da solidão e da morte, obrigada por isso.