ser um animal, de fachada e o elogio da traição
Eu sou um animal. De todas as características que eu possa ter ou de todas as identidades que precise assumir, ser um animal é o dado mais concreto de realidade a que eu me atenho. Todo o resto que eu sou pode variar em contextos, pode depender de uma percepção externa. Ser um animal, não. Perceber-me um ser humano é muito complexo, há muitas camadas. Muitas nóias. Um ego, e todas as dificuldades de comunicação da espécie que desenvolveu a fala (e sua representação gráfica, a escrita) como forma de criar problemas.
Se eu fosse um animal outro que não um ser humano, meu cheiro significaria muito mais do que os sons que eu emito. Não é o caso. Disfarço meus cheiros como a maioria dos colegas humanos que encontro diariamente no metrô, no trabalho, na conveniência do posto de gasolina. Já que meus cheiros não falam, preciso eu mesma articular desejos e desgostos. Mas não posso articular muito; não se deve ser muito explícito nem sobre vontades nem sobre mal-querências. Meu cérebro precisa decidir de antemão o que vale sair pela minha boca ou pelas minhas mãos. Somos mesmo um animal sui generis.
Porém, ao fim e ao cabo, me pensar como animal me deixa mais tranquila. Não por misantropia. Eu não seria hipócrita a esse ponto. Mas porque eu entendo melhor o corpo que eu tenho por essa perspectiva. Quando dói minha cabeça, lembro que sou o corpo de um animal, e se ela dói por ansiedade, eu sou um bicho, reagindo ao entorno com esse corpo. Se me faltam horas de sono, é como animal que reajo, e se me acomete o tédio depois de horas em um mesmo ambiente, só me resta pensar no que eu faria se fosse um bugio, um sagui ou um gorila (provavelmente um gorila, muito inábil para subir em árvores, tendo que se distrair com o que de melhor houver no chão).
Eu sempre me recordo da cachorra que eu tinha que comia mato para vomitar. Às vezes meto o dedo na minha güela, desesperada para tirar de mim o que caiu mal entre esôfago e estômago. Assim como a cachorra que eu tive, nada garante que eu não volte a botar pra dentro o que no outro dia me fez mal. É muito provável que a gente tenha aprendido a se domesticar na mesma época (eu e minha cachorra, os canídeos e os seres humanos). Menos interessante do que humanizar um bicho e supor nele características nossas eu quero mais é saber o que tenho deles. Mesmo que me falte o que eu mais queria: o dedo polegar opositor nos pés dos chimpanzés, gibões e orangotangos.
Há 50 anos, várias coisas aconteciam. Henry Kissinger ganhava um infame Prêmio Nobel da Paz, Pinochet assumia após um golpe contra Allende no Chile, inaugurava-se a Ópera de Sidney. O presidente do Brasil era Emílio Garrastazu Médici e me furtarei ao trabalho de escrever adjetivos ofensivos aqui. Naquele momento a ditadura cívico-militar instaurada em 1964 no Brasil criava seus legados mais nefastos.
Em 1973, João Gilberto lançava seu “álbum branco”, Gal Costa sua “Índia”, Secos e Molhados o disco com suas cabeças empratadas que vendeu mais de 1 milhão de cópias. Uns meses atrás fui ao Sesc 24 de Maio e assisti a um baita show de Jadsa (procurem saber) cantando Todos os Olhos de Tom Zé (AQUELE lá!), dentro do projeto 73/23 – Meio século de discos históricos que celebra alguns desses álbuns lançados há 50 anos. O próximo show desse projeto acontece no final de semana de 16 e 17/12, com Linn da Quebrada e Giovanni Cidreira apresentando Secos e Molhados (boa sorte pra conseguir ingressos).
Foi também em 1973 que Calabar - O elogio da traição veio a público. É dessa peça de Chico Buarque e Ruy Guerra que vem o meu nome Bárbara, mas nunca a vi encenada - e, o que eu acho mais bizarro, nunca nem achei o texto dela pra ler. Só me restaram os vestígios. A Rádio Batuta lançou uma série chamada Safra 73 para analisar a produção fonográfica brasileira naquele ano e, dentre os episódios, há um dedicado a esse disco que precisou se chamar “Chico canta” devido à censura. Foi o melhor material que já vi sobre essas composições de Chico Buarque e Ruy Guerra com orquestração de Edu Lobo e que aborda tudo que eu gosto nessa obra: História do Brasil, uma personagem com meu nome, flerte lésbico e ódio à ditadura. Ódio e nojo.
Buscar o que me difere nos animais só me traz confusão. Gosto mesmo é de perceber no que somos iguais - e então encontrar algumas possibilidades de respostas.