como filha única, na saída do metrô e um cão que leva à luz
Se eu digo que cresci como filha única, existem alguns pensamentos que ocorrem ao interlocutor sem que eu tenha qualquer controle sobre isso. Pensamentos mais ou menos equivocados. Da mesma forma quando digo que nasci sob o signo de Aquário. Não acredito em horóscopo, mas me vanglorio dos elogios e não refuto as críticas. Fique à vontade pra supor que não tenho sentimentos ou que sou uma idealista nata. Assim como tudo bem acharem que filhos únicos são mimados e egoístas. Nada disso é verdade ou mentira.
Outro dia, eram nove da noite, eu arrancava rejunte dentro do box do banheiro. Ali, toda a minha história como uma pessoa que cresceu como filha única parecia resumida. Quase meia-noite, terminei de fazer o trabalho, parte por cansaço, parte porque a resina endurecia tornando impraticável persistir. Meus braços doíam, trabalharia no dia seguinte. Fui dormir meio arrependida, pensando que devia ter pagado um profissional, pensando que devia ter pedido para ficar na casa de alguém nos dias que o epóxi precisava secar. Além do trabalho naquela noite, foram algumas semanas planejando o momento ideal, aquela semana em que eu passaria dias longe de casa, tomando banho em outro lugar.
Fui dormir pensando que mania insuportável essa a de querer descobrir como as coisas são feitas, como elas são consertadas; que mania insuportável a de não querer incomodar. Que mania insuportável de ser exatamente como eu sou.
(No fim, o rejunte ficou melhor do que estava, o que é um pouco perigoso, porque valida as persistências que tanto me irritam em mim)
Há alguns meses venho usando parte do meu tempo livre para jogar Humanity, um jogo em que você é um cachorro iluminado (especificamente da raça shiba inu) que precisa guiar pessoas para a luz. Quando li a primeira resenha sobre o jogo, tive certeza de que era exatamente o tipo de coisa que me interessa - e, juro, não é só por ter cachorro envolvido.
Trata-se basicamente de um puzzle, em que você pode testar possibilidades até conseguir resolver. Se o cachorro desaba no precipício, não tem problema. Ele reaparece no último local onde esteve. Se você errou a solução e precisa começar a fase de novo, pode pedir para que seus comandos anteriores permaneçam. A trilha sonora é muito boa (embora os latidos do cachorro interfiram bastante nela) e o texto um pouco niilista. Por que, afinal, como uma obra chamada Humanidade pode sintetizar o que faz da humanidade a humanidade?
O objetivo final de cada fase varia. Em algumas, basta levar as pessoas até a luz. Em outras, elas têm que conduzir um humanóide gigante e dourado com elas (uma espécie de deus, que é incapaz de andar sem as pessoas o conduzirem). Esse deus fica em disputa quando as Pessoas são encaradas pelos Outros - pessoas como elas, mas que tem um aspecto de sombra. Isso, claro, desdobra-se em guerra. Depois de outras pessoas, os inimigos são as máquinas. E, depois disso, eu ainda não sei porque não terminei a última etapa do jogo (chamada Civilização, precedida por Dependência, Guerra, Competição, Destino, Escolha, Despertar). Às vezes, é importante que todas as pessoas estejam unidas; às vezes, a solução é justamente separá-las, botá-las como indivíduos em atividades distintas.
Em geral, a associação que as pessoas fazem é com o jogo Lemmings, famoso nos anos 1990, em apenas duas e boas dimensões. Para mim, a primeira referência foi uma instalação de Laurie Anderson chamada Chalkroom. Eu a experenciei quando a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo a trouxe para o CineSesc. Assim como a instalação de Laurie, é possível usar aparelho de realidade virtual para jogar Humanity. Mas eu mesma fiquei satisfeita com jogar pelo computador, sem correr o risco de sentir labirintite na hora de deslocar as pessoas pelo espaço em 3D. O que mais assemelhava uma obra da outra pra mim era a forma como as pessoas - o cão e os deuses também - se deslocam por essa infinitude geométrica em que tudo que não é chão é abismo. Mas, no fundo, é até um pouco engraçada essa associação no meu cérebro, porque é da Laurie Anderson o filme Coração de Cachorro, uma das minhas obras preferidas do cinema (e não só porque tem cachorro envolvido).
O melhor desse jogo é perceber como a gente é capaz de adquirir conhecimento através de tentativas e erros. Algumas vezes, sem entender o que eu tinha que fazer para conseguir ganhar, me perguntei “o que não estou vendo aqui?”, para, dali a pouco, desvendar o segredo da fase. Ao mesmo tempo em que nenhum desafio parece impossível, alguns são difíceis o bastante para eu querer resolver só ele antes de desligar o computador.
(A última vez em que eu tinha achado um jogo legal assim foi quando emendei FEZ e Monument Valley. Na época, escrevi um texto sobre jogos sem vilões)
Fiquei com vontade de jogar (e amo a Laurie Anderson)
Opa, fui correndo atrás de Humanity - sua descrição me pegou de jeito 🖤