quinze dias em duas canções
Minhas férias em duas composições de Vicente Barreto: Tropicana e Niède Guidon
Tirei férias em fevereiro e, apesar de terem sido apenas 15 dias, consegui fazer uma viagem com facetas muito diferentes. Andamos por Pernambuco, Alagoas, Bahia e Piauí, do carnaval até duas semanas adiante. De todas as formas que eu poderia apresentar esse roteiro, a mais eficiente me pareceu resumir essas andanças com duas canções de Vicente Barreto: Tropicana e Niède Guidon.
Depois de muitos anos desejando, em 2024 finalmente conheci o Carnaval de Olinda. Tropicana é, portanto, uma escolha óbvia. Pelas ladeiras da cidade era possível escutá-la pelo menos duas vezes em cada bloco, numa média de cinco blocos por dia; faça a conta e pense em quantas vezes eu cantei “Da manga rosa quero o gosto e o sumo” a plenos pulmões ao longo do feriado.
Alceu Valença paira sobre Olinda no Carnaval. Os moradores da região apontam suas casas, avisam que às vezes é possível vê-lo na sacada. As orquestras se empenham em tocar Tropicana e mais uns dois ou três clássicos de seu repertório. O parceiro na composição, porém, caminha por São Paulo mais discretamente que o colega, escutando nas esquinas da vida sua música mais famosa.
O Carnaval de Olinda é, para resumir em uma palavra, intenso. Dias depois da tal da “quarta-feira ingrata”, ainda escutava os frevos ecoarem dentro da minha cabeça, muitas vezes acompanhados de flashes de ladeiras coloridas e gente se movimentando freneticamente. Fui acompanhada pela Morena Tropicana, mas não foi só por conta do frevo. Adiante na viagem, entre Petrolina (PE) e São Raimundo Nonato (PI), tive a chance de experimentar uma fruta nova, umbu, a do verso “Beijo travoso de umbu, cajá” da música.
A graça dessa música é que, embora nos remeta à imagem do nordeste brasileiro de uma forma genérica, foi composta em um hotel em São Paulo e contempla frutas que crescem no clima tropical pernambucano de Alceu e no semiárido baiano de onde veio Vicente.
Em 2022, Vicente Barreto lançou seu décimo segundo disco, Paleolírico. O álbum foi construído como uma investigação arqueológica do passado de Vicente, na busca da sonoridade do lugar onde nasceu e foi criado no interior da Bahia. Nessas andanças recentes pelo estado, estive quilômetros ao norte de onde veio o compositor, com o Rio São Francisco como fronteira. Mas, de algum modo, a arqueologia nos uniu.
Uma das faixas do álbum recebe o nome da arqueóloga franco-brasileira Niéde Guidon (na música, com a escrita “certa” de seu nome em francês, mas que foi aportuguesado por ela mesma com o acento agudo), responsável pela existência do Parque Nacional da Serra da Capivara. Incrustrado no sudeste do Piauí, o parque é responsável por discussões acaloradas sobre a ocupação de seres humanos no continente americano, é um guardião de pinturas de diferentes estilos feitas em pedra há uns 10 mil anos, é a casa de mocós, borboletas amarelas, sapos, macacos, araras vermelhas.
Como Alceu Valença em Olinda, Niéde é uma figura inescapável entre as cidades de São Raimundo Nonato e de Coronel José Dias. Chamada de “doutora”, a ilustre moradora de São Raimundo Nonato nasceu no interior de São Paulo, estudou na França e no Brasil, e teve sua vida transformada pela descoberta dos sítios arqueológicos naquela região. Qualquer pessoa que teve um mínimo envolvimento com pesquisa científica (sobretudo naquilo que a gente chama de “sul global”) deve ficar abismado com o tamanho do projeto de Niéde e seu impacto na vida das pessoas do entorno (pro bem - com geração de emprego, instalação de cisternas nas casas, formação para crianças e adultos - e pro mal - com uma concepção antiquada de parque nacional que desconsiderava as populações tradicionais na preservação do local).
Conhecer a região e ver pessoalmente os desenhos avermelhados de bichos e figuras humanas foi muito melhor do que pude imaginar em todos os momentos em que eu já havia desejado estar lá. Voltei para casa com a curiosidade de saber como se parece a região no período de estiagem quando a paisagem é certamente outra. Motivos para voltar não bastam: no mínimo mais umas centenas de sítios arqueológicos para visitar.
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▶ Adeus, Carnaval de Olinda: em 2021, meus amigos e guias (turísticos, espirituais, o que preferirem) do Carnaval de Olinda gravaram a ausência de festa nas ruas da cidade. O documentário de 14 minutos está agora disponível para ser assistido na internet.
▶ Niéde Guidon - Uma arqueóloga no sertão: não teve jeito, devorei o livro de Adriana Abujamra na volta da viagem. A “doutora” sobre quem todo mundo me falava no Piauí ganhou essa biografia com várias histórias que escutamos da boca do guia na Serra da Capivara. Da jornada do Fusca azul até o embate com a população do povoado de Zabelê, dando o tamanho justo da empreitada de Niéde.
▶ Roda Viva - Niéde Guidon - 29/09/2024: Sim, estou só o meme de Meninas Malvadas: “Eu estou obcecada, passo 80% do meu tempo falando de Serra da Capivara e nos outros 20% eu torço pra que alguém fale sobre pra eu poder falar”. Se um livro for uma empreitada grande demais e a canção de Vicente Barreto breve demais, a entrevista de Niéde ao programa Roda Viva dez anos atrás pode ser um bom meio-termo para conhecer mais sobre o parque e as contradições que o permeiam.
pronto, está reaberta minha obsessão pela serra da capivara. e também adorei a surpresa de estar aí entre as indicações <3
que lindo relato, fiquei com vontade de participar desse Carnaval tão Brasil!