pensamentos sobre a língua, vários tempos e descobrindo uma artista
A língua é, para mim, das coisas mais absurdas que existem e, como tantas outras coisas absurdas, posso passar horas pensando a respeito dela.
Ato 1: Me assustei quando a filha dos meus amigos, uma criança bem pequena, que faz três anos esse mês, usou uma conjunção do meu lado. Como pode saber que um “mas” faz uma baita diferença, ajuda a fazer explicar à mãe que, independente do que ela diga, há uma vontade contrária em jogo? Aquisição de linguagem tem um pouco de tentativa e erro, mas ainda assim tem algo de fantástico em ver alguém entendendo o mecanismo por trás da língua.
Ato 2: Na minha frente, um músico, em um estúdio de gravação, disse a outro músico: “a gente prepara a cama e você só encosta”. Depois, ele explica que aquelas notas deviam ser mais escuras. E parece que, apesar da minha incompreensão sobre como os sons viram gradação de luz ou uma atividade doméstica envolvendo lençóis, os presentes entenderam do que se tratava, pois os acordes seguintes saíram como esperado. É tão bonito quando uma palavra muda de significado e todo mundo (ou quase todo mundo) a entende no contexto.
Ato 3: Uma matéria de televisão mostrava indígenas passando secreção de sapo nos seus corpos. Eu não estava muito atenta, mas num impulso levantei-me, fui à estante e peguei o texto de Manuela Carneiro da Cunha onde eu soube pela primeira vez do uso da secreção de perereca por indígenas no Brasil e no Peru. O capítulo do livro discute direito intelectual de saberes tradicionais, mas eu penso nele muito por algo que descobri ali: não há palavras intraduzíveis. “Na falta de outra coisa, sempre é possível recorrer a neologismos ou a circunlóquios na língua vernácula. Segue-se que usar palavras estrangeiras em sua forma original constitui uma opção deliberada”. Assim que, todas as vezes que alguém usa uma palavra em inglês perto de mim, a minha atenção se volta para as razões pelas quais a pessoa escolheu não falar em português ao invés de me preocupar com o significado da palavra em si. O que é um briefing, afinal?!
Aprendo aos poucos a tratar meu tempo livre como um tempo livre. Escasso, achava que tudo tinha que ser agendado, encaixado como compromissos inadiáveis. Como se tudo pudesse ser importante sem que nada deixasse de ser importante. É óbvio que não dá para dar conta de tudo, mas cada vez mais aceito não dar conta de quase nada. Decido no dia, decido na hora. Foi assim que fui parar na exposição de Cao Fei na Pinacoteca um domingo desses.
Fazia um dia bonito, não queria ficar em casa à tarde. Peguei o metrô e fui. Ainda não conhecia o espaço novo da Pina Contemporânea que abriu por esses tempos aí e também não conhecia o trabalho da artista chinesa. Eu não sabia o que esperar, e, surpreendentemente, saí querendo contar dela para outras pessoas. A surpresa está no fato de que eu não sou entusiasta de vídeos em exposições de arte; não tenho paciência, em geral o espaço para vê-los é desconfortável, quebra um pouco a dinâmica do passeio. Mas os dois vídeos que eu parei pra de fato assistir de Cao Fei me deram vontade de ver de novo (aí vem o drama da vídeo-arte: o máximo que achei foram teasers na internet). Outro ponto que me deixou desconfiada é que arte contemporânea com muita tecnologia também me desgasta um pouco por conta do espaço escuro, a barulheira e as coisas que quebram (de fato, um dos aspiradores-robô na exposição parou de funcionar e uma das funcionárias da sala teve que avisar pelo rádio a um colega o acontecido).
Mas a expografia de Cao Fei: o futuro não é um sonho é bem criativa. Fui quando não tinha muita gente, esperei numa fila de só duas pessoas para ver o vídeo de realidade virtual inspirado no filme que estava passando (e que eu realmente não me conformo de não conseguir achar na internet pra ver inteiro). Ao mesmo tempo em que tematiza a relação de um pai e um filho, há um interesse sobre as construções de inspiração soviética na China (uma ideia “fora do lugar”, porque ainda que tenha modernizado o país a partir dos pressupostos do Partido Comunista, alterou as formas com que as pessoas e suas famílias se relacionavam com os espaços).
É um pouco contraditório como a exposição parece falar de algo que a gente entende - a fase desse capitalismo tardio tecnológico e globalizado da qual Brasil e China fazem parte - mas com camadas que certamente escapam ou são mal-entendidas por um público não familiarizado com a história e a cultura chinesas (meu caso, inclusive). Pra quem não poderá ver a exposição pessoalmente, achei um punhado de entrevistas interessantes da artista por aí (tipo esta daqui). No site dela dá pra ver algumas de suas obras (como o teaser dos vídeos, projetos fotográficos e pirações em jogos virtuais).
Vi recentemente a expo da Cao Fei e amei. Não olhei ainda o que foi pra SP, mas aqui eu gostei muito dos filmes, da animação feita com IA e um vídeo em que a pergunta era "qual é o futuro do metaverso" feita para pessoas comuns nas ruas da China. Curiosa para ver a da Pina.