observação de pássaros, feira livre e muitos sonhos juntos
Alguns urubus passam voando pelo bairro. Percebo que não se trata de apenas um e que eles pousam em cima do mesmo prédio. Deve ser uma família e, como ornitologia não é uma área que me interessa muito, apenas posso supor que se tratem de urubus, com a grande envergadura de suas asas e pelas características das áreas por onde circulam.
Me pergunto se os moradores do prédio sabem da possibilidade de haver em seu telhado um ninho de urubus ao mesmo tempo em que me encanta, de um jeito meio torpe, a chance de a vida persistir dessa maneira. Eu os vejo se aproximando por cima da avenida, e também me pergunto quantas outras pessoas se atentam a eles na rotina que a cidade impõe à gente.
Quando eu trabalhava próximo da Praça da Sé, todos os dias, praticamente, um urubu pousava no prédio da frente. Pulando sobre o telhado, me divertia, a vida é mesmo muito absurda. Um bicho enorme e bastante feio, bem desengonçado, percorrendo o centro da cidade. Apenas mais um de nós. Nunca, entretanto, o vi pelo chão, já muito disputado por pequenos pardais, rolinhas eventuais e pombas atrevidas.
A emergência dos drones me faz ser capaz de imaginar o que veem os urubus que sobrevoam São Paulo, mas, com o tamanho de suas asas, imagino também quantos quilômetros conseguem percorrer pelos ares. Devem se entreter nas imediações do Mercado Municipal, aproveitar o que as margens do Tamanduateí é capaz de oferecer em termos de carcaças e desejos. E, depois, pousam em uma construção histórica sem ter a menor ideia de que há coisa de dois séculos e pouco, ali era um lugar privilegiado para o povo da cidade ver comitivas de viajantes chegando de Santos, no litoral.
Olhando pela janela de um andar alto, vejo os prédios e demais construções que fazem de São Paulo São Paulo. É de praxe chamá-la de feia, mas certamente ela é feiosamente minha. Quando as pessoas saem de São Paulo para as festas de fim de ano é quando me sinto mais parte dela, quando ando pelas ruas de meus dias com certo sossego. Um sossego paulistano, porém. Quando olho São Paulo pelo alto de um prédio, penso que essa cidade é a soma dos sonhos de muitas pessoas. Na acepção mais caótica desse pensamento.
Caótica como o filme Paprika, um anime lançado em 2006, dirigido por Satoshi Kon. Para quem viu A Origem (“Inception”), o filme parece ter muitas referências ao desenho japonês, sobretudo na coisa de as pessoas ficarem entrando no sonho um dos outros. Pessoalmente, achei Papika mais interessante¹. Olhar pela janela e ver São Paulo, o centro da cidade principalmente, um espaço de múltiplas temporalidades sobrepostas e de muitas disputas e resistências, me leva automaticamente para uma das cenas do filme.
Uma grande parada ocupa as ruas do Japão com figuras vindas dos sonhos de pessoas diferentes se aglomerando pelo espaço. Os sonhos dos outros são estranhos, bizarros, assustadores às vezes. Os sonhos dos outros no espaço público podem ser acolhedores, mas também podem ser grotescos. Em Paprika, entrar nos sonhos alheios torna-se um grande perigo. Acessar seus desejos, seu lugar mais íntimo - um lugar que, tirando o dono daquele sonho, ninguém mais deveria acessar.
São Paulo, se você reparar, é uma cidade cheia desses desejos secretos das pessoas. Desejos de poder individual e de reconhecimento público dos diversos povos que se encontraram nesse território. Desejos de imposição de uma vontade autoritária de uma só visão de mundo e, claro, o desejo de se opor a isso. Desejos de extravagância, de excessos, do abundante para poucos. Mas também o desejo de uma vida mais simples, mais fácil, e até quem sabe uma vida mais bela entre as paisagens de gosto duvidoso que essa cidade revela.
eu tô gostando TANTO dos seus textos, amiga, nossa!
Eu amo que sempre leio o sintética e me pego pensando que só você poderia escrever isso. Acho fantástico que nunca sei qual caminho tua reflexão vai escolher, mesmo tendo acesso a eles quinzenalmente.