o que fica do passado, o mar e o samba na rua
Eu tenho o hábito de futucar meu passado. A minha memória não é muito boa. As pessoas me contam coisas que eu disse a elas anos atrás e eu me surpreendo. Me surpreendo quase que duplamente, pelo que quer que eu tenha dito e pelo fato de alguém se lembrar de algo que eu possa ter dito. Por isso, escrever é tão importante para mim; por isso, guardar fotografias significa tanto. Garanto a mim mesma minha memória em registros do que pensei ou enxerguei em um dado contexto da minha vida. Cutuco esses objetos com frequência. Como na época em que eu era criança, e encostava na casquinha da ferida com calma, metendo por debaixo do sangue coagulado minha unha, testando para ver se ainda doía, se arderia expor a pele crua ao ar. Porque o passado também carrega nossas dores como as casquinhas arroxeadas. Remexer em arquivos antigos - nas duas acepções da palavra: a analógica e a digital - me leva a dois caminhos. No primeiro, penso em quem fui. Nas intenções e nas eminências. No porquê de eu ter desejado guardar isto ou aquilo. No segundo caminho, penso em quem sou. No que não me diz mais nada embora já tenha significado muito e no que posso transformar para dizer outra coisa que me signifique mais. Eu já senti vergonha quando olhei para o que ficou do passado. Vergonha de não ser capaz de fazer com meu tempo escasso de hoje em dia as coisas bonitas de outrora. As coisas bonitas que demandam um olhar mais puro e descansado, dois atributos que me faltam cotidianamente. Hoje, acho que a vergonha se transmuta em orgulho, porque por mais que eu me esqueça de quem eu fui, ainda sou um pouco aquela. E que bom poder esconder pedaços da minha própria arqueologia para as próximas que serei.
Sonho muito e lembro pouco. Mas um dos sonhos que eu nunca me esqueci foi um em que eu encontrava Chico Buarque numa sala de espera de um aeroporto. A sala de espera era, a bem da verdade, a cozinha da casa da minha avó. Então, eu ia até ele e lhe contava, como se tivesse intimidade para tanto, sobre meu nome vir da sua música. “Chico, você sabia que meu nome vem da sua música?”.
Como muitas Luísas e Beatrizes, eu, uma Bárbara, me apaixonei logo cedo pelas canções do Chico. E isso mesmo tendo ouvido inúmeras vezes Cala a boca, Bárbara na toada da música (eventualmente dito por mim e a mim mesma). Bárbara e Cala a boca, Bárbara são duas músicas da peça Calabrar: o Elogio da Traição. A peça foi censurada pela ditadura em 1973, a parte da música que dá a entender que há uma relação homossexual da personagem com Ana de Amsterdam também.
Então, foi assim que meio desacreditada consegui assistir ao primeiro show de Chico Buarque da minha vida. “Que tal um samba?”, com a participação da Mônica Salmaso, se propõe a fechar um ciclo de tristezas e desgraceiras que andamos vivendo por essa terra.
Das maravilhas do mundo que eu já pude vivenciar, a música brasileira é a que se manifesta com mais recorrência. Em tudo que ela entrega de festa, de comunhão coletiva, de poesia, de arranjos, timbres, melodias, de versos terminados em proparoxítonas (e devo estar acompanhada nessa com a maioria das pessoas nascidas brasileiras). Mas, a junção de Chico Buarque com Mônica Salmaso representa um tiquinho mais para mim.
Nos quatro meses que passei morando no interior da Argentina dez anos atrás, foram eles que me acompanharam nas noites de estudo ao pé do aquecedor. Na época, eu não tinha smartphone nem conta em plataforma de streaming. Tinha um computador de segunda mão com uma memória pífia. Mas, junto com um catadão de pdfs acadêmicos que poderia vir a precisar, levei no meu kit de sobrevivência o álbum Noites de gala, samba na rua, lançado em 2007, no qual Mônica canta 14 canções de Chico.
Se na hora das comidas, eu sou do camarão ensopadinho com chuchu, na hora da saudade, eu queria era cantarolar que hoje o samba saiu procurando você, quem te viu, quem te vê! Todos os dias estou exposta à música brasileira, mas foi longe daqui que ela se pareceu com uma companhia carinhosa, um exemplo sonoro de lar, na voz de Mônica, nos versos de Chico.
"Das maravilhas do mundo que eu já pude vivenciar, a música brasileira é a que se manifesta com mais recorrência." Concordo plenamente!! Que linda a tua escrita ♡