o perfeito possível diante das imperfeições cotidianas
De que servem imagens bonitas em um mundo que nem sempre é belo?
I
Nos últimos tempos, quando aparece o interesse em escrever a respeito de algo e começo a elaborar mentalmente o texto que poderia sair daí, noto que há algumas verdades sobre mim escondidas entre frases generalistas. Um segundo olhar me leva quase sempre a algum período da minha vida entre os 7 e os 17 anos. Não como uma biografia linear, e mais como se houvesse naquele período de dez anos infinitas de mim, as quais recupero após algum fato disparador de minha vida adulta. Passei a olhar pra essa recorrência com o mesmo interesse curioso que me despertam as dízimas periódicas. Esses números que por modestos que sejam possuem o infinito dentro de si.
II
Quando eu comecei a me interessar por fotografia, lá pelos 16 ou 17 anos, me frustrava a dificuldade que eu tinha de chegar a uma imagem bonita. O empecilho era, sobretudo, técnico, tendo à minha disposição apenas câmeras digitais com poucos pixels e um flash forte demais. Encontrei sem uso uma câmera analógica com lente de plástico no quartinho da bagunça da casa dos meus avós. Com essa câmera aprendi coisas básicas e importantes, mas seguia distante das imagens bem definidas, que mostrassem ao mundo como o mundo era. Com o passar do tempo, a tecnologia foi melhorando e tive acesso a câmeras melhores, lentes mais bem feitas, mecanismos que me permitiriam fazer imagens próximas do real. O problema, dessa vez, é que eu já não acreditava mais em imagens lindas; afinal, o que conta uma imagem perfeita em um mundo imperfeito?
III
Dias perfeitos tem sido o filme mais unânime dos últimos anos (só perdendo para Shrek 2). Não fui capaz de encontrar - embora também não tenha interesse em procurar - uma só crítica que não diga que se trata de um bom filme. Até porque fica um pouco difícil não criar empatia por um protagonista que deixa banheiros públicos organizados, é uma referência de família para a sobrinha adolescente, devolve criança perdida a sua mãe e atura quase estoicamente um colega de trabalho displicente. Só não digo que ele é um anjo porque esse é outro filme de Wim Wenders, com Bruno Ganz no papel principal. Hirayama evita conflitos ao mesmo tempo em que parece fazer exatamente o que quer da sua vida (um equilíbrio perfeito? Possível?!). Todos os dias o homem faz praticamente as mesmas coisas. Dentre elas, produz imagens imperfeitas. Essas imagens de uma câmera analógica compacta e automática mostram a ele que a mesma árvore observada diariamente no horário do almoço nunca é exatamente a mesma árvore, como uma atualização do pensamento grego de que nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio.
+
▶ Há alguns anos, não sei bem como, descobri uma conta no instagram de um fotógrafo japonês chamado SEITA MARUI. Gosto muito das imagens que ele posta por lá, cotidianas, meio oníricas. Achei engraçado - com ajuda do tradutor do aplicativo - que na hora de montar uma exposição de suas fotografias, ele deu o nome de “Cafuné”, uma palavra que significa muito para nós, falantes da língua brasileira.
▶ Assisti Dias Perfeitos naquelas semanas antes do Oscar, em que o medo de ficar de fora das conversas entre amigos e uns dias de férias em São Paulo felizmente confluíram. Mas, no finzinho de 2023, outro filme sobre o Japão mexeu muito comigo. Trata-se de Bem-vindos de novo, de Marcos Yoshi, e o trailer tá disponível aqui. O filme apresenta um Japão muito diferente de uma propaganda comissionada pelo governo japonês sobre banheiros limpos. Filho de descendentes de japoneses que, nos anos 2000, resolveram ir ao país de seus antepassados trabalhar, o diretor constrói um documentário sobre o retorno dos pais ao Brasil. Praticamente estrangeiros no próprio país e, pior, na própria família, o retorno é cheio de desconfortos e tentativas de reacomodações. O Japão só aparece mesmo em fotos enviadas aos filhos adolescentes, mostrando pequenos cômodos e caminhos de fábricas, o que parece ser a paisagem principal daqueles imigrantes trabalhadores.
▶ Em temas absolutamente não relacionados, sigo lendo Guerra e Paz de Tolstói, motivada por esta leitura coletiva. Estou bem atrás no cronograma, mas paciência, a vida segue acontecendo. A leitura tem sido ótima, quando possível, e às vezes fico muito tocada com certas passagens, com alguns personagens tão confusos, tão complexos. Tenho a sensação de que um dia alguém me dirá que começou a ler Guerra e Paz e sentirei uma certa inveja como normalmente sinto quando alguém lê pela primeira vez algum livro que mudou minha vida. Mrs. Dalloway, Viva o povo brasileiro, Sagarana, seguramente. Me bateu uma tremenda curiosidade sobre que livro as pessoas gostariam de nunca ter lido para poder ler de novo como se fosse a primeira vez.
eu fiquei com vontade de ler Guerra e Paz nesse clubinho, mas o momento não combinou com minha agenda... será se ainda vale a pena entrar no meio do ano? compartilho do sentimento de inveja de quem está lendo ou vendo algo pela primeira vez. mas sou bem esquecida, então algumas releituras são preciosas como a primeira vez.
eu ouvi uma única crítica ruim a Dias Perfeitos num podcast, mas a pessoa foi a única num grupo de 4 a não gostar, e foi rechaçada por isso (inclusive nos comentários). eu discordo, penso no filme quase todo dia e acho que já tá chegando a hora de reassistir.
não fugi à regra e adorei Dias perfeitos! fiquei curiosa com o outro filme que tu recomendou. diferentes experiências de imigração japonesa tem me interessado desde que li no ano passado Peixes de aquário (Rafaela Tavares Kawazaki), sobre a chegada de imigrantes no interior de sp.