multiplicar-se em duas, metrô escuro e leitura conjunta
Eu queria ser duas, desde muito pequena. Não para fazer mais coisas do que uma pessoa dá conta, mas porque eu tinha uma dúvida atroz. Em casa, não tínhamos telefone. A primeira linha que conseguimos chegou quando eu tinha seis anos de idade. Então, antes disso, sempre que alguém precisava falar por telefone com a minha mãe, era para o telefone da vizinha da frente que ligavam.
Minha mãe ia até lá, atravessava o corredor que conectava os dois apartamentos. Certamente, eu ia atrás. Certa vez, quando cheguei ao apartamento da vizinha, reparei na televisão ligada. Parecia que ela assistia à mesma coisa que estava na nossa tv. Mas eu não conseguia ter certeza. Era, claro, muito parecido, mas não havia como dizer que eram as mesmas pessoas falando as mesmas frases. Naquele momento, pela primeira vez, quis ser duas. Mandar uma de mim de volta para casa e descobrir se as televisões estavam conectadas de alguma forma ou se cada uma apresentava programações diferentes de acordo com quem estivesse na frente delas.
Mais velha, senti novamente esse desejo quando, em uma era pré-aplicativos de celular, andava pelos metrôs de São Paulo. Queria me multiplicar para saber - de uma maneira mais ou menos definitiva - qual era o melhor trajeto que se poderia fazer. Entre calcular baldeações e esperar pela sorte de ver um ônibus azul-marinho virando a esquina, eu queria ter certeza de qual era a melhor forma de voltar para casa.
Nunca fui capaz de fisicamente gerar outra de mim, mas passei algum tempo, confesso!, tentando criar uma versão virtual de mim mesma. Enquanto avançava com meu corpo por um dos caminhos possíveis, a versão mental tentava andar pelas reconstituições que eu fazia, em um hercúleo esforço de ser fidedigna, não pular nenhum quarteirão, não supor uma velocidade irreal para quaisquer meios de transporte que a outra “pegasse”.
Tratava-se, é possível perceber hoje, de uma técnica muito rudimentar de georreferenciamento, mas uma ótima prática mnemônica. Um bom antídoto para o tédio de um transporte público lotado, e o poder mais irrelevante que poderia levar alguém ao internato do Professor Xavier.
O hábito de ler um livro é bastante antissocial. Das atividades de distração que as pessoas têm, é o que parece exigir o maior uso de uma concentração individual, o máximo de silêncio possível (e quanto é isso hoje em dia?), o maior desprendimento de um grupo. Ouvir música, praticar uma atividade física, construir um móvel ou cuidar de um jardim acolhem bem outros corpos, ouvidos, mãos, bocas. Mas certamente isso não foi assim sempre, nem em todos os lugares o é.
Em igrejas, as leituras são conjuntas. Enquanto escrevo este texto em um domingo, penso em quantas pessoas se juntaram hoje para ler um livro juntas (um pedaço de livro sagrado). Em slams e saraus, textos são lidos e até criados em público e em coletivo. Seguramente muitas das histórias que sabemos hoje como canônicas só sobreviveram porque foram oralizadas - de Dom Quixote aos contos de Grimm, passando por todos os grupos humanos que transmitem assim suas memórias.
Digo tudo isso pois no começo de dezembro Cauê me mandou uma mensagem informando que havia chegado o momento de lermos Guerra e Paz de Liev Tolstói. Tratava-se de um print que falava de um grupo de leitura do livro ao longo do ano de 2024. Simplesmente 1 capítulo por dia ao longo de 361 dias. Entrei no link para ver os termos de uso proposto pelo criador da newsletter Footnotes and Tangents.
Aceitei a proposta. Recusei apenas a sugestão de lermos uma edição em inglês, da Penguin. A coisa em si já é difícil o bastante sem o drama da língua estrangeira. Embarquei na leitura em português mesmo, sem saber que seria confrontada já nos primeiros capítulos com um bocado de frases em francês, um gosto particular da aristocracia russa do século XIX (por sorte, com tradução nas notas de rodapé (porém secretamente torcendo para que tenha uma função de Duolingo esse monte de ma chérie pra cá e pra lá)). Achei a ideia maneira, e ainda dá tempo de embarcar nessa leitura coletiva já que estamos apenas na semana 1 de 52. O primeiro texto a respeito dos capítulos lidos durante a semana está bem interessante (pode ser massa também pra quem já o leu):
Depois de sair da faculdade, que no caso de uma graduação em História significa basicamente frequentar um clube do livro diferente por dia cada um deles focado em uma teoria e um período histórico, tive poucas oportunidades de participar de algo assim. A última vez em 2021, quando eu, Stephanie e meu primo lemos O caminho do artista da Julia Cameron juntos (Stephanie, inclusive, vai começar um clube do livro para relê-lo; recomendo). Ano que vem, quem sabe, eu passo por aqui contando como foi voltar a ler coletivamente e tirando um clássico russo da lista de livros-que-eu-gostaria-de-um-dia-ser-capaz-de-ler.