meus mortos, um amanhecer, e duas campesinas chinesas
Meus mortos habitam dentro de mim. Não imagino que estejam em nenhum outro lugar, a não ser nos meus gestos, minhas lembranças, minhas vontades. Até no meu jeito de me expressar. Meu avô vive em mim, dizendo para eu não cutucar minhas espinhas, porque pode infeccionar (e eu as cutucando mesmo assim, como antes, quando ele ainda era vivo). Ele também vive na forma como eu organizo as bolas na sinuca, posiciono o taco, miro fechando o olho direito. Minha tia vive num tênis que era seu, e insisto em usar, levei mês passado pro sapateiro colar e costurar a sola. Ela vive no meu desejo inegociável de ser livre, mesmo que isso implique em escolhas que podem ser dolorosas. Já a minha bisavó vive na receita de pão dos dias de calor.
Eu torcia muito para que dias de sol virassem dias de fazer pão com a minha avó, quando eu era criança. Deixar o pão crescer no quintal. A fornada sempre saía em quatro grandes pães, distribuídos entre visitas ocasionais (um deles direto para a casa onde eu morava com a minha mãe). Pedi para minha avó me ensinar essa receita e ela me disse que quem fazia era a mãe dela. Assim, a receita da minha bisavó acaba me levando para seu apartamento no centro de Piracicaba, suas pernas com varizes roxas a deslocando lentamente pelo corredor do apartamento. A atípica dinastia de nós quatro, ela, minha avó, minha mãe e eu, as quatro primogênitas de suas gerações. A imagem de Sant’Ana, nome que ela dividia com a minha mãe, e ela me puxando pro canto, estendendo uma nota de dinheiro e falando “guarde e não mostre a ninguém”.
O principal motivo para eu ter desejado ter meu próprio fermento natural era ser capaz de usá-lo na receita da bisa. Primeiro, falhei muito. Não consegui dar vida a uma levedura própria. Pedi uma isca. Fiz dois pães em semanas diferentes. Falhei muito mesmo. Foi só na terceira receita que eu entendi mais ou menos o que eu devia fazer para acordar os fungos adormecidos em um vidro na geladeira. Fiz uma pizza: deliciosa. Voltei aos pães. Fiz um pão de forma: deu certo. Com uma audácia quase petulante, decidi adaptar a receita da vó Anna.
O problema é que eu não sabia de muitas coisas quando comecei a misturar os ingredientes. A quantidade em gramas do fermento biológico para o fermento natural deveria ser multiplicada por quatro (2 tabletes de 15g viraram 120 gramas de levain). E o tempo de fermentação é muito diferente e só descobri quando achei a massa pequena demais depois de seis horas descansando em temperatura ambiente (cabe dizer, um dia de calor).
Assim, tive que testar, e, ao invés de uma fornada com quatro pães, foram quatro fornadas com pães completamente diferentes. Um intragável que não cresceu nada, um que desacreditei que cresceria e me surpreendeu, um que ficou um pouco massudo mas assado na medida e um que por pouco não saiu perfeito: dois minutos a menos no forno teria evitado a casca queimada. Ainda assim, mais motivos para comemorar do que para lamentar.
Meus mortos habitam em muito do que faço, em muito de quem já sou, naquilo que eles mesmos me ensinaram. Mas, se meus mortos vivem aqui, é também por um esforço de achá-los em ações cotidianas, em reinventar suas existências na minha própria.
A internet é um lugar onde a gente descobre que tudo o que acha minimamente estranho e peculiar sobre nós mesmos é compartilhado por algumas outras centenas de milhares de conterrâneos do planeta Terra. E nada grita mais isso do que as diferentes vertentes de “vídeos satisfatórios” que existem por aí. De fãs de ASMR que curtem ver pessoas mastigando, esfregando materiais de diferentes texturas num microfone ou sussurrando para aliviar estresse alheio, a explicação sobre o gosto é sempre a mesma: “isso é muito satisfatório”.
Tem os que acham que satisfatório é ver impurezas sendo retiradas da pele de alguém como se fossem pequenas larvas, ou os que se contentam em saber que a menina do lofi segue lá estudando com o gato na janela. O meu nicho é o das campesinas chinesas Dianxi Xiaoge e Li Ziqi. Nada grita mais “satisfação!” para mim do que um café-da-manhã vagaroso assistindo a um de seus vídeos de mais de 20 minutos.
As duas aparecem nos vídeos com personalidades muito diferentes. Dianxi mais animada, mandando o cachorro sair da frente, os irmãos mais novos ajudarem a descascar frutas, interagindo com os vizinhos do vilarejo, enquanto usa quantidades obscenas de pimenta em frituras por imersão. Já Li parece mais séria, decidida a dominar todos os processos de algo supostamente simples, vestindo no mato roupas que eu não teria coragem de usar no evento mais importante do ano, preocupando-se em cuidar da avó. Separadas por mais de mil quilômetros de distância, eu não sei praticamente nada de Dianxi e Li que não esteja nos seus vídeos. São celebridades do YouTube, mas de um lugar do mundo em que ser uma celebridade parece significar algo muito diferente do que geralmente imaginamos que uma celebridade seja.
Não saber quase nada delas não me impede de imaginar muitas coisas. Eu presto muita atenção aos detalhes, mas sempre me parece que as ausências informam mais. Nos vídeos de Dianxi (que são os mais abundantes), me chama a atenção os materiais da sua cozinha. Quase nunca há qualquer elemento de plástico, com preferência para fibras de plantas enredadas como peneiras, mexedores de metais, potes de cerâmicas. Não lembro de já ter visto sua geladeira, embora ela já tenha dito que uma ou outra coisa deveria ficar em um espaço refrigerado, e seu fogo habitualmente é mantido com lenha. Não acho que ela não tenha seus tapauér em algum canto, ou um freezer bala; mas sinto que pro que ela quer contar, é importante que os elementos sejam os mais tradicionais (associados com o rústico) possível.
Há pessoas mais jovens e idosas com muito mais frequência do que adultos de meia-idade (é como se faltasse uma geração entre elas e seus avós, os campeões de carisma dos canais). Além disso, apesar de ser evidente o uso de equipamentos profissionais manejados por técnicos profissionais, a história contada é a de que estamos assistindo seus cotidianos. Não sabemos quem opera os drones, ajeita as luzes, trata o material na edição. Na minha cabeça, essas duas ausências conversam: elas devem ter vivido a saída do campo (assim como a geração anterior a elas) e se aprimoraram em narrativas audiovisuais ao retornarem para suas províncias no sudoeste e no centro-norte chinês.
Em última análise, enquanto escapo dos meus próprios dramas - nada satisfatórios - de moradora de uma grande cidade no sul global, penso em como Dianxi e Li realizaram a revolução tão almejada por Jiang Qing (a última esposa do velho Mao Tsé-Tung): a de transformar a China rural em um desejo de refúgio e vida boa e coletiva. E elas fazem isso falando pouco, enquanto se esbaldam criando fartura para refeições felizes em volta de uma mesa com pratos flutuantes.