escrivaninha, colagens e lisérgicos
eu me senti verdadeiramente em casa quando o marceneiro montou a escrivaninha. eu já tinha pia, geladeira, fogão e um guarda-roupa. não tinha uma mesa para refeições, os livros ainda ficavam em caixas amontoadas em um canto, nem tinha sofá (continuo não tendo). preenchi as quatro gavetas com papéis variados que acumulei todos esses anos. papéis de toda sorte. desde os reconhecidos publicamente, que me conferem cidadania, me garantem um nome e o pertencimento a uma linhagem de outros seres humanos até uns desenhados com face adesiva por trás para colar em algum lugar (e que eu guardo esperando o momento certo de colar em uma ocasião especial e certamente já não colam mais). envelopes que comprei aos montes, esquecendo sistematicamente que já possuía alguns deles em outras gavetas. preenchi as gavetas com tintas, lápis, canetas, giz até. minha noção de lar está atrelada a coisas miúdas, muitas delas beirando a desimportância. ou melhor, está atrelada ao fato de eu esparramar essas coisas, bagunçá-las, ordená-las segundo a minha vontade. apenas a minha vontade. a forma como eu espalho meus objetos diz mais sobre mim do que o desenho de minhas impressões digitais. a escrivaninha é comprida, mas estreita, de compensado de madeira numa cor clara. aloquei sobre ela a mesa de corte (não é exatamente uma mesa, é mais uma prancha), arranjei um estilete barato (as coisas sobre - e dentro também - da escrivaninha são sempre muito baratas, como se isso me fizesse sentir menos pretenciosa ao usá-las). recorto papéis de revistas, alinho esses pedaços em outro papel, crio imagens sem sentido aparente ao colá-los juntos, e depois me pergunto se há afinal inteligibilidade ali. por algum tempo (horas até) meu corpo e minha mente estão conectados, resolvendo um problema criado apenas por eles: como se constrói uma imagem a partir da destruição de outras imagens?
Me convenço, a cada vivência com uma dessas substâncias, de que tal dicotomia entre recreação e terapia é artificial e moralista, ainda que necessária, talvez, para auxiliar na reabilitação dos psicodélicos entre os medicamentos respeitáveis, estudados de modo circunspecto por cientistas comportados, distantes da busca pessoal ou coletiva por alegria, autoconhecimento, altruísmo, coragem, sensualidade e bem-estar que marcaram a contracultura.
Semana passada, terminei de ler o livro Psiconautas - Viagens com a ciência psicodélica brasileira, do Marcelo Leite, e queria estrear essa seção de recomendações com ele. Percebi que durante a leitura tive necessidade de indicá-lo para alguns amigos metidos com ciência, mencionei-o nos almoços na firma, atrasei meu sono umas noites para adiantar a leitura. Há algum tempo, todos os anos eu tento ler algum livro do Oliver Sacks e talvez o meu interesse pelo livro do Leite tenha vindo de um dos meus textos favoritos do neurocientista britânico: Altered States (traduzido para a revista Piauí como Estados alterados e disponível no site).
Marcelo Leite é um jornalista que escreve sobre ciência e se propõe no livro a mapear estudos (brasileiros, principalmente) com substâncias psicoativas da ayahuasca, do ecstasy (o MDMA de hoje em dia), do LSD, de cogumelos e da ibogaína - planta de que eu nunca tinha ouvido falar - para tratamentos de doenças psiquiátricas. Tudo é muito dinâmico nessa área de pesquisa, então dá um certo receio de que o livro deixe de ser atual. Ele, por exemplo, não perde a oportunidade de lembrar como era ruim ter um cérebro no governo anterior (não só porque o governo não tinha nenhum interesse em investir em pesquisas, como inclusive porque pensar sobre Bolsonaro não escapava de sentir algo entre tristeza, raiva e desilusão). Por sorte, esse trecho deu uma envelhecida rápida (e, espero, duradoura).
O que pode se perder no tempo - seja pelas publicações atualizando estudos em ratos viciados em morfina, saguis em depressão, e seres humanos no geral, seja pela mudança no ambiente político do país - é compensado com um tom bastante pessoal sobre as experiências do próprio Marcelo com algumas das substâncias que ele apresenta no texto. De alguma forma, me afeiçoei ao amor que ele sente pela esposa Cláudia, o carinho como fala das filhas e associa as lembranças boas às áreas do cérebro que são estimuladas por algumas dessas substâncias.
O bom de eu ler esse tipo de texto como uma curiosa e não como uma pesquisadora é ter a chance de achar engraçado que mais de 90% da serotonina do nosso corpo é sintetizada no intestino e não no cérebro. Talvez a minha grande pira com esse tipo de leitura é a de sacar que somos um conjunto de reações químicas que interagem e criam outras reações químicas, tudo isso num contexto cheio de desafios e tentativas de adaptação (sociais e fisiológicas, simultaneamente).