dentro da baleia, peixinhos e vanguarda tcheca
Comi os farelos de cogumelo que encontrei em um saquinho. Logo depois do café da manhã, um tempero extra, só para não desperdiçar. Não ia dar nada. Arrumamos as malas e saímos. Corte seco. Não paro de olhar para a pomba que está estática em cima de um poste de luz na rodoviária. Imagina ser uma pomba, um cerebrozinho tão pequenininho, voar, comer lixo, ficar parada, equilibrada, sobre um poste de luz enquanto a cabeça balança, sacando o que acontece em volta. Um ônibus se aproxima, deve ser o nosso. Não tô achando minha carteira!. Me abaixo no chão, desesperada. Sem carteira não tem passagem, não tem viagem, não tem cartão pra próxima passagem, nem documento pra entrar no próximo ônibus. Encontro-a no lugar de sempre na mochila. Meu coração acelerado, sentindo angústia dos cenários ruins recém-inventados na minha cabeça, sorrio com um pouco de vergonha. Tô bem doida. Tô bem doida, mas não quero ficar neurótica, vou tentar dormir no ônibus. Uma estrada cheia de curvas, escorrego o capuz do moletom até cobrir meus olhos, me aninho pequeninha na poltrona. Boto os fones no ouvido e fecho os olhos. O ônibus arranca de ré, faz uma curva, e começa a andar na estrada. Abro os olhos. Não. Ainda estamos parados na plataforma, que estranho. Em seguida, o ônibus arranca de ré, manobra, vai de frente e estamos na estrada. De novo não. Na terceira vez, eu rio. Caramba, vai ser uma longa viagem de uma hora e meia. De olhos fechados, a música vira formas e cores. O ônibus é uma baleia. Uma baleia mesmo, enorme por dentro. Os passageiros alinhados em um patamar superior. Olho para baixo. Numa clareira está Jonas com um amigo e um violão, passando seus dias cantando juntos. Que fascinante é a acústica dentro da barriga de uma baleia! Enquanto olho os dois lá embaixo, lembro de Celly Campello. Que triste, né, ter desistido do rock'n'roll pra cuidar da família aos 20 anos de idade. Percebo que de todas as coisas que fiz mal feitas na vida só pela graça de saber como era fazer me faltou ter uma banda. Eu devia ter uma banda um dia. Subir em palcos me dá taquicardia, falar em público me faz suar na palma da mão. É isso que eu quero, ter uma banda um dia, mas só um dia mesmo, falar "eu tive uma banda, durou 1 dia". Abro os olhos. O ônibus é só um ônibus subindo a serra. No céu, nuvens em movimento. Elas se juntando para formar algo. Um rosto enorme de gato. Olha só! Se não é o grande senhor do universo?!
A experiência de ter lido A insustentável leveza do ser no colégio certamente me impactou de uma forma que poucas outras leituras obrigatórias daquela época conseguiram. Aos 16 anos, o contexto histórico da Primavera de Praga me escapava na leitura, mas descobrir que era possível alguém escrever sobre amor, filosofia e os diferentes tipos de cemitério daquela maneira me fez ir atrás de outros livros de Milan Kundera.
Sentia vontade de ir a Praga, conhecer a República Tcheca. Mas isso foi passando ao longo do tempo, e a própria escrita de Kundera foi parecendo muito “de hominho” para mim. Então, dia desses, um pouco depois da morte do escritor (mas sem nenhuma relação direta com isso), a Cinemateca Brasileira fez uma mostra de um fim de semana com filmes de vanguarda tchecos. É muito específico, eu sei, mas eu recomendo bastante tirar umas horinhas para sacar o que rolou no cinema da Tchecoslováquia nos seus inquietos anos 1960 (em certos aspectos, acho alguns filmes até mais interessantes do que a Nouvelle Vague francesa, inescapável em 9 de 10 cursos de cinema).
Como começo de conversa, recomendaria ir atrás do filme As Pequenas Margaridas (Sedmikrásky no original, ou Daisies, em inglês), de 1966, que foi dirigido por Věra Chytilová. Na mostra na Cinemateca, assisti ao único filme dirigido por Ester Krumbachová, chamado O assassinato do Sr. Diabo, de 1970. Visões um pouco menos francófilas e masculinas do que uma vanguarda artística pode oferecer.
[Aproveitei para entrar no Programa de Amigos da Cinemateca Brasileira. No fim fica mais barato esse apoio anual do que três sessões de cinema no shopping. Orgulho de Paulo Emílio Sales Gomes e Martin Scorsese]
Adorei a viagem
Viajei com você 💗