começos de livros, zona norte e a expansão do possível
Só dois começos de livros estão gravados no meu cérebro de modo que eu penso neles recorrentemente. “Muito cedo foi tarde demais na minha vida” e “A Sra. Dalloway disse que ela mesma ia comprar as flores”. As primeiras frases de O amante de Marguerite Duras e Mrs. Dalloway de Virginia Woolf ressoam em mim desde a primeira vez que os li. E, no fundo, sinto que dizem a mesma coisa sobre quem eu sou. Muito cedo tive que aprender a lidar com fazer as coisas sozinha. Muito cedo aprendi que a solidão seria quase como uma companheira, e me sentiria completa estando só. Muito cedo precisei entender fatos muito complicados dos seres humanos, principalmente daqueles que me rodeavam, dos adultos que tinham a função de cuidar de mim. Muito cedo precisei descobrir como cuidar de mim, mas também como cuidar deles. Não se tratava de sair para comprar flores para uma festa; muito cedo, eu mesma disse que eu ia cuidar para que tudo ficasse bem.
Foi aquele episódio de Succession que meu deu vontade de fazer a recomendação dessa edição da newsletter. Em uma das cenas finais, os três irmãos Roy saem de um barco para outro barco para pegar um helicóptero e chegar de carro ao lugar onde precisam estar. Esse combo de meios de transporte, que também são símbolos de distinção que mostram quão ricos esses personagens são, me lembrou de outra cena dessa novela da HBO.
Na primeira temporada, Kendall Roy tem uma reunião importante, precisa pressionar pessoas para conseguir votos a seu favor, e fica preso no trânsito. Pensando agora, poucas soluções de roteiro seriam tão humilhantes para os personagens bilionários do que ficar preso entre diversos outros carros, de pessoas muito menos podres de ricas do que elas. A única solução para esse impasse é sair correndo, andando entre os carros pelas ruas de Nova York.
Cidades foram criadas ou modernizadas no último século para acomodar carros. A conta do instagram Carros destruíram nossas cidades faz comparações entre diferentes cidades ao redor do mundo e suas soluções urbanísticas. Algumas privilegiando carros, outras privilegiando pessoas nas ruas. Eu gosto desse tipo de conteúdo menos por achar que tudo possa ser aplicado em outros lugares (afinal, cada um tem a sua história, sua especificidade), e mais por expandir a noção do possível. Um dia, abrir a Avenida Paulista para pedestres caminharem na rua já foi impossível; hoje não é mais.
Carros são ótimas tecnologias quando só uma parcela pequena da população pode usá-los; a mesma parcela que pensa e executa as políticas públicas das cidades onde moramos. Quando os carros se popularizam, só resta aos ricaços fugirem pelo ar, e eu não fico surpresa que São Paulo seja uma das cidades com maior frota de helicópteros do mundo. (Nem sou ingênua a ponto de achar que o problema das mudanças climáticas está mais na conta dos carros que passam debaixo da minha janela do que na dos caras fazendo viagens de 10 minutos de jatinho)
Não é estranho que a nossa compreensão do possível nesse assunto seja muito estreita. O carro é uma libertação de transportes públicos abarrotados das grandes cidades, e é também um símbolo de ascensão social em uma sociedade muito desigual. A capital do Brasil exala futurismo antigo em seu plano piloto com eixos feitos para carros. São Paulo é cheia de nós viários que inviabilizam o caminhar dos pedestres. E não faltam projetos viários de pavimentação em regiões de floresta pelo país afora. Mas, quem sabe, existam outros caminhos. Caminhos que nos aproximem dos lugares onde moramos sem serem apenas avenidas pelas quais atravessamos.