brincar e jogar como uma mulher
Uma edição especial sobre os Jogos Olímpicos de Paris 2024
Hoje, qualquer pessoa que queira conversar sobre esporte de alto rendimento no Brasil precisa, obrigatoriamente, falar sobre mulheres. A maior medalhista do país se chama Rebeca Andrade e os ouros conquistados no principal evento esportivo do mundo em 2024 passaram pelas mãos delas. Eu, que sempre fui muito dos esportes (como audiência entusiasmada e também como praticante amadora e empenhada), chego ao final dos Jogos Olímpicos de 2024 muito contente com essa conversa.
Entendo que na época do colégio eu era uma exceção: uma menina no grupo que enxergava a educação física como um prêmio. Sentia que era o momento de ser feliz, de sair da sala, de não precisar ficar sentada olhando um caderno, uma lousa. Uma matéria escolar que não tinha nota já era, em si, libertadora. No entanto, até meio cedo nas nossas trajetórias, minhas amigas tentavam arranjar atestados que as garantissem que não precisariam frequentar a aula de educação física. Na minha cabeça, era estranho. Hoje eu entendo melhor.
As mulheres saem cedo demais das quadras. Muitas param de entrar no mar quando vão à praia. Os meninos se tornam adolescentes e homens que jogam futebol aos finais de semana, assistidos de alguma arquibancada por suas namoradas e esposas. Mas algumas meninas nem chegam a entrar de fato nas quadras: em parte da minha experiência escolar, as meninas só podiam treinar fora do horário de aulas ginástica rítmica, vôlei ou handebol (e foi assim que eu tive uma curta carreira como reserva de goleira, já que minhas modalidades favoritas - futebol e basquete - estavam proibidas para mim). No fundo, as mulheres param de brincar cedo demais.
Muitas das meninas que cabulavam a aula de educação física passaram a frequentar academias ainda bem novas. O problema, então, não devia ser o exercício físico em si. Distúrbios de imagem e alimentares eram um tema recorrente no nosso recreio, entre as garotas. As mulheres param de brincar cedo demais, e logo aprendem a sofrer com seus corpos por pressões estéticas. O esporte não é necessariamente bom para o corpo - principalmente no alto rendimento. Mas o esporte sempre me ajudou a libertar o serzinho selvagem que mora em mim. Me ajuda a canalizar meu espírito mais competitivo e a despertar meu lado cooperativo. Jogos são feitos de acordos coletivos, ajudam a formar comunidades, nos dão momentos de lazer.
Cada vez que eu vejo uma mulher descobrindo o prazer em uma atividade física, descobrindo um jogo que lhe interesse jogar, eu me alegro. Eu gostaria de viver em um mundo em que as mulheres possam brincar depois de adultas.
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▶ Os Jogos Olímpicos na Grécia Antiga aproximava os homens dos deuses. Pessoas com vidas banais tinham a chance de se tornarem quase heróis. Da Antiguidade ao nosso tempo, talvez essa seja a única conexão entre as olimpíadas através das eras, as das histórias fascinantes de pessoas “normais”. As que mais me chamaram a atenção, claro, foram as de algumas mulheres: a Tia Tania (Zhiying Zeng) do Chile que competiu no tênis de mesa; a trajetória da Valdileia Martins que começou a treinar salto em altura com o pai em um assentamento do MST; e a importância das mães de Caio Bonfim (medalhista de prata na marcha atlética) e de Tati Weston-Webb (medalhista de prata no surfe).
▶ Quando meu tio me deu uma bola de basquete de presente e meu avô fez um buraco num balde para pendurar no quintal e eu ficar jogando sozinha, perceberam que eu parava, soltava o ar e arremessava. Igual a Hortência. Quando íamos visitar minha bisavó no interior, minha avó comentava: “a Magic Paula jogava aqui”. As duas lendas maiores da modalidade no Brasil. Hortência e Paula rivalizavam em campeonatos no interior de São Paulo e, juntas, conseguiram a prata olímpica em 1996. Mas naquele time havia outra gigante, com uma trajetória igualmente admirável: Janeth Arcain. Duas vezes medalhista em Olimpíadas (além da prata em Atlanta, levou o bronze em Sydney), pioneira na WNBA, campeã mundial e pan-americana, deveríamos celebrar mais essa ex-jogadora brasileira.
▶ O ponto baixo dos Jogos Olímpicos de Paris, seguramente, foram as campanhas de difamação que uniram a autocracia russa, o dono da rede social simpático a discursos de ódio e a preconceituosa escritora de livros infantis contra competidoras do boxe (e, claro, a extrema direita brasileira resolveu latir após ouvir soar esse apito de cachorro). O tema é complexo, porque envolve uma treta entre o Comitê Olímpico Internacional e a Associação Internacional de Boxe. Mas o resumo é simples: mulheres têm corpos diferentes e o padrão de feminilidade europeu não é o único jeito de ser mulher. Fingindo se importar com a segurança das mulheres, algumas pessoas vão usar de discursos machistas e transfóbicos para atacar quem é diferente de si. Que evitemos essas armadilhas.
▶ Conversando com amigos, percebi que muita gente não entende bem o papel que o governo tem na formação de atletas. Os comitês olímpicos são instituições privadas, assim como as confederações e os clubes que formam os atletas de elite. A Ana Moser explicou em entrevista à TV Cultura um pouco a visão dela (com a qual eu concordo e, portanto, lamento sua demissão do Ministério dos Esportes) sobre o tema. O Estado deveria fomentar o esporte como ponto estratégico para políticas de assistência social, saúde e educação para todos.
Hoje eu lamento ter sido a menina que usava desculpas pra não fazer a aula de educação física. Mas pelo menos aos trinta e tantos descobri o prazer da corrida 😊
durante a final do futebol feminino, minha mãe me lembrou da história de uma menina que jogava na mesma escolinha de futebol que eu. ela era ótimo (arrisco dizer que tinha um futuro promissor), mas o máximo que conseguia era treinar na escolinha, porque - nas competições - ela era barrada por ser menina.