Foi rápido. Levei poucas páginas na leitura do livro de Annie Ernaux pra pensar “talvez seja cedo demais”. Lendo em público, sentada numa mesa, encarei uma parede branca à minha frente repetindo mentalmente “talvez seja cedo demais”. Em O Lugar, a autora decide contar a história de seu pai a partir de sua morte. Eu não fui inocente, acho que nem ingênua, eu tinha lido a sinopse do livro. Mas, mesmo assim, me perguntava “será que não é cedo demais para ler sobre isso?”. O lugar em questão é um lugar social, a história de um homem nascido e crescido no campo, mas também a história de como um abismo se forma. O abismo entre um pai e uma filha, forjado através do avanço dela em uma carreira acadêmica, no pavor que ele tinha de passar vergonha diante de pessoas de classes sociais mais abastadas. Não foi mais do que uma frase que me fez encarar a parede branca. Existe isso de cedo demais pra enfrentar a realidade?
Segui a leitura. Mais ou menos disposta a me exilar em uma cabine de banheiro até que os olhos desinchassem e o nariz não acusassem o choro no espaço público. Parei de me perguntar se era cedo demais; passei a me questionar se, no fundo, será sempre assim. Porque eu sinto que é mais provável que sim. Sem qualquer aviso, serei invadida por lembranças, por pensamentos inesperados. Verei alguém na plataforma do metrô e pensarei “parece ele”, até lembrar que não pode ser. Saberei de pessoas que agora se juntam a mim nesse grupo desagradável. Pensarei sobre o abismo que havia entre nós, sem muitas chances de entender o porquê. Os esforços de transformá-lo em um vale mais ou menos transponível. Tudo que eu só posso imaginar, comparar a história dum camponês do norte da França com a sua migração de um vilarejo no norte de Minas Gerais.
Entre o “talvez seja cedo demais” e o “agora vai ser sempre assim”, me confrontei com esse desejo pelo desconforto. Eu sabia que ele viria e, mais do que isso, busquei-o. Imaginei que a leitura seria árdua, apesar das pouquíssimas páginas à minha frente. Ainda assim, intuí, eu precisava dessa boia para me afundar em sentimentos que não dou conta de visitar sozinha.
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escreveu sobre João Gomes e a ars poetica do matuto moderno na Zumbido, publicação do Selo Sesc. Gostei muito de como ela parte de sua lembrança pessoal de escutar pela primeira vez a música de João na cozinha de casa em Pernambuco no alto-falante do celular da mãe para explicar o que há de tão encantador na obra desse homem com pegada de vaqueiro. Por acaso, as ilustrações do texto foram feitas por mim (hehe).▶ Outro dia, separei um tempo para ler um texto do
sobre seu processo de pesquisa de doutorado. Acompanho o autor desde o auge dos trocadilhos no Twitter e sofro da mesma síndrome que ele, de viúvos do Google Reader. Fui desavisada ao texto “Como selecionar os frios para a tábua de frios que você vai levar na Noite da Tábua de Frios com seus amigos” e quase saí com vontade de escrever um projeto de doutorado. Pra escapar dessa armadilha, me distraí montando no Notion um banco de dados de citações dos livros que li, criando tags de assuntos, ordenando por autores, obras e idiomas. É o máximo que eu consigo no momento.▶ Com a morte recente de Niéde Guidon, comecei a escutar o podcast Os Caminhos de Niéde Guidon que tinha salvado na época em que viajei para a Serra da Capivara. Decidi também botar em prática um plano antigo de escrever sobre algumas viagens que fiz e que muito me marcaram para enviar aos assinantes pagos desta newsletter (como serão textos mais longos, com outra proposta, optei por poupar dele os assinantes gratuitos). A primeira edição chega às caixas de e-mail no final do mês.
Eu não sei como eu caí na sua news, mas acompanho em silêncio há alguns meses. Deixo um abraço pra vc. Me deparei esse ano com De volta a Reims, do Didier Eribon... mesma temática a Annie (inclusive é citada no De volta). Chorei mesmo lendo e e nem me importei em disfarçar. Agora vai ser sempre assim, mas talvez escrever e ler sobre ajude a dar uma nova dimensão e significado ao que foi antes. Um beijo, obrigada pelas news.
um abração deste tamanho pra você, Babi <3