Foi um lance de segundos. Alguém me lançou a bola e o dedo anelar da mão esquerda recebeu um impacto desproporcional. Senti dor instantaneamente. Abri e fechei os dedos na tentativa de atestar que nenhum deles havia sido fraturado, mesmo que a dor me fizesse crer que eu devia ter machucado não apenas um, mas três dedos da mesma mão. Cheguei em casa, botei gelo, tomei banho, dormi. Acordei no dia seguinte com o dedo ainda inchado, roxo. Fui ao trabalho, botei gelo e garanti aos meus colegas que, se não melhorasse a dor e o inchaço, iria ao médico no dia seguinte. Não teve outro jeito: fui, saí de lá com uma imobilização e um atestado médico para 15 dias afastada do serviço.
Na dúvida sobre como lidar com a tala e os esparadrapos (ir almoçar na casa da minha avó? Comprar marmitas congeladas? Me alimentar de pratos feitos mais ou menos gostosos, mais ou menos baratos?), decidi naquele primeiro dia de atestado dormir até acordar. Quando despertei, umas 8h e algo da manhã, meu pai havia morrido.
No mesmo aparelho em que recebi essa notícia completamente inesperada, informei três pessoas, recebi alguns telefonemas de gente se dispondo a me ajudar e, em ato contínuo, desinstalei o Instagram. Acho que me alimentei, não faço ideia do quê, disse a meus irmãos que se precisassem de algo para me avisar e passei o dia entre choros e sonhos.
Me achei muito jovem para dizer que meu pai morreu. Vieram, porém, à lembrança todos os amigos, todos os conhecidos que tinham passado por isso antes de mim, antes dos trinta. Não há nenhuma garantia de que quem passar por isso depois o fará com mais paz e conformação. Pensei também nas pessoas que eu conhecia que receberam de seus pais ainda menos do que recebi do meu. “As pessoas dão o que elas têm”. Penso muito nisso.
No escuro, deitada em minha cama, percebi como numa ocasião dessas as lembranças e os traumas nos inundam, nos afogam até. Como se uma comporta de uma represa fosse destruída. Mas consegui subir à superfície para respirar: nos últimos anos havia aberto pequenos furos nessa comporta para que ela pudesse escoar um pouco por vez.
A ingrata tala em meu dedo fazia com que eu me sentisse ainda mais vulnerável, ainda mais miserável. Simultaneamente, eu pensava em como uma pequena fissura no osso equivalia — nos termos do mundo do trabalho — a três mortes de um pai. Foi a minha lesão que me deu o tempo necessário para me recolher, para entregar-me a uma tristeza que não avisa de antemão quanto tempo demorará a passar.
A consciência do vazio é que ainda dói. Tenho quase certeza de que se meu pai tivesse vivido mais vinte anos, algumas lacunas seguiriam como tal. Eu não perguntaria o porquê de seus sumiços nem via sentido em inquirir sobre seus silêncios. “As pessoas dão o que elas têm”. Mas na noite da eleição para prefeito, duas semanas depois de seu funeral, saber que não haveria nenhuma mensagem dele ironizando a derrota do neofascista do momento me fez chorar antes de dormir.
O luto está longe de ser um processo linear. Então não acho anormal um dia estar bem e no outro ser atropelada por um mau pensamento. O interfone toca. Há uma encomenda para mim. Enviado de uma confeitaria, o presente de uma amiga com quem eu havia marcado um café antes de tudo (antes do dedo, antes da morte). Expliquei por que não poderia encontrá-la por aqueles dias, mas que tão logo eu tivesse ânimo nos veríamos. O doce foi uma forma de se fazer presente, como também o foram as mensagens dos amigos que se ofereceram para me acompanhar ao velório. Estou certa de que “as pessoas dão o que elas têm” e que mesmo entre faltas, ausências e vazios, nada disso é absoluto em si mesmo.
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▶ Semanas antes do fato deflagrador desse texto, botei alguns livros que queria ler no meu Kindle. Entre eles, Uma morte muito suave de Simone de Beauvoir que a Clara havia me indicado com muito afinco. Foi uma completa maluquice ler esse livro por esses dias, porque, de vez em quando, eu tinha que parar para chorar um pouco. Tirar os olhos da tela, olhar para o nada, elaborar pensamentos, sentir que o luto é algo tão particular e tão coletivo, tão único e tão igual. No texto, ela conta sobre o processo de morte da mãe, que é internada com uma fratura no fêmur e saí da clínica morta por um câncer descoberto na ocasião. Daria para escrever uma edição da newsletter inteira só sobre os meandros do livro, mas acho que posso resumir em poucas frases o que ele me causou. Foi uma espécie de acalento ler sobre a morte de uma pessoa com quem a autora tinha, seguramente, uma relação complexa sem que ela tenha descambado para a romantização ou para o rancor sobre o passado. Também foi excelente ler algo escrito com uma visão muito semelhante à minha, que não creio na vida eterna, na imortalidade da alma, na salvação dos anjos ou nas condenações dos demônios.
▶ Lembrei-me de um texto que a Bárbara Bom Angelo publicou no ano passado sobre o “clube dos sem pai”. Deixo aqui para quem se interessar.