amigos virtuais, um guardião e é melhor ligar para ele
Eu fazia amigos na internet. Então, o tempo passou e eu não gosto mais tanto assim da internet. Para ser honesta, quando penso que eu gosto de algo nela, meu primeiro impulso é tentar entender o porquê alguma coisa ainda me atrai por aqui. A internet foi algo fundamental nos meus anos de formação. Parte de quem eu sou certamente só se constituiu nas broncas que eu levava cada vez que chegava a conta de telefone das noites em que eu puxava o cabo do aparelho para o computador. Eu passava horas mexendo em códigos html, tentando entender a linguagem css, enquanto conversava pelo icq ou, mais tarde, pelo msn com meus amigos. Alguns da escola, outros que eu nunca sequer descobri o sobrenome. Naquela época, a gente não sabia, mas internet era um lugar para onde a gente ia. Hoje, internet é um lugar onde a gente mora. De vez em quando a gente sai da internet para outros espaços. Mas isso é raro. Em geral habitamos os dois lugares simultaneamente. É na internet que a gente cultiva nossas principais relações, familiares, profissionais, de amizade.
Olhando hoje, em um cenário amplo, o que me causa mais estranheza é pensar que eu fazia amigos na internet. Aprofundava relações em longas conversas diárias, compartilhava links e me aproximava de quem eu achava interessante naquelas praças. O que eu estranho é que hoje eu não sei muito bem como se faz um amigo e não tenho muita certeza se sei cultivar as amizades que fiz. Hoje, eu me canso das telas, vejo muito pouco sentido nelas.
Eu fazia amigos em caixas de comentários de blogs, em comunidades do orkut. Fiz amigos até no facebook. Amigas, principalmente, naquela onda feminista que nos uniu - e que mais pra frente deu uma sequência de caldos em cada uma de nós, tendo que lidar com nossas próprias contradições enquanto aprendíamos marcadores sociais da diferença, criávamos nossos sensos de justiça, descobríamos mais sobre homens que amamos e mulheres que detestamos.
Depois disso, o que mais haveria? A emergência absoluta do indivíduo, uma ilusão absurda, e a estafa do fim dos tempos, do fim de algum tempo, ao menos. Descobri que eu não queria mais que as pessoas acessassem o que eu pensava na hora em que eu pensava; descobri que eu não poderia gostar muito de muita gente se eu soubesse como seus cérebros funcionam em tempo real. Então, concomitantemente em não querer estar onde todo mundo está, não sei ainda muito bem como encontrar pessoas onde poucos estão. Amadurecer nesse meio híbrido é um pouco conturbado, deixar de querer o que antes era tão natural, e criar artifícios para entender o que é então fazer um amigo. Um negócio que já pareceu fácil como organizar o menu lateral de um blog qualquer.
Na minha cabeça, a série Mad Men não era sobre publicidade, mas sobre drogas. Nessa mesma cabeça, Better Call Saul não era sobre drogas mas sim sobre publicidade. Terminei de assistir a essa série que foi ao ar originalmente em seis temporadas entre 2015 e 2022 e deixo aqui meus dois centavos sobre ela.
No primeiro episódio de Better Call Saul, Gene Takavic termina um dia de trabalho na loja de cinnamon rolls em um shopping center, vai para casa. De dentro do armário do banheiro tira de uma caixa de sapato uma fita VHS. Quando ele dá o play, escutamos a voz de Saul Goodman, o expansivo advogado de Walter White em Breaking Bad, na televisão de sua casa. Gene Takavic é o próprio Saul Goodman e, pouco tempo depois, descobrimos que ambos são Jimmy McGill.
Em sua nova identidade como Gene, depois que tudo dá errado no Novo México, há algo que ainda o prende a seu passado. E é através de seus próprios comerciais de tv que ele reconhece isso. Ao longo da série somos confrontados com pensamentos como “o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe”, ou “a pessoa é para o que nasce” até os episódios finais, que apresentam diferentes discussões sobre arrependimentos. Walter White preferia não ter largado seu melhor emprego; Mike preferia não ter aceitado a primeira propina quando era policial; Jimmy McGill adoraria nunca ter falhado em uma trapaça.
As propagandas que McGill começa a encomendar para estudantes de cinema lidam com essas questões da série. Na primeira delas, uma grande encenação sobre um acidente de trabalho demonstra a sagacidade do advogado contra uma grande firma (a de seu irmão, não coincidentemente). Com a grande repercussão, Jimmy encontra uma boa função para seu talento audiovisual: chegar a idosos explorados pelas casas de repouso em que decidiram viver seus últimos anos de vida. O homem nasce bom, mas em algum momento ele vai querer chutar o pau da barraca.
Jimmy - assim como Walter White em Breaking Bad - passa a assumir uma personalidade imoral ao longo das temporadas. Quase como se eles “pesassem na mão” em seus atos que, a princípio, poderiam ser compreensíveis, mesmo quando não fossem impolutos. É com a propaganda que ele chantageia um cliente de sua esposa, e que tenta revender seu espaço comercial depois de uma empreitada mal sucedida. São seus comerciais que atraem seus clientes mais perigosos, mas que garantem seu crescimento na profissão. Saul Goodman se desenvolve nas letras miúdas das leis, em pequenos golpes, mentiras contadas com convicção, estratégias elaboradas. E faz isso por um caminho que seus pares jamais achariam digno: o da propaganda na televisão.
No último episódio (sou uma herege perante o culto anti-spoiler, fica o aviso tardio), as propagandas de Saul Goodman são sua emboscada ao mesmo tempo em que são sua redenção. São elas que permitem que ele fosse reconhecido pela polícia, mas são elas que fazem com que seus colegas prisioneiros também o reconheçam. O que faz com que os infratores da lei o admirem e contem com ele é também o que o leva ao derradeiro desígnio. Quando a trifurcação das personalidades Jimmy/Saul/Gene encontra, enfim, o mesmo destino.
Talvez um dos tantos problemas da internet seja a sensação falsa de que todas essas pessoas que 'seguimos' poderiam ser nossas amigas - e então o desconforto de 'por que não temos de fato centenas de amigos na vida real?'.
Ultimamente tenho pensado que ainda bem que não tenho que conviver na vida com esse tanto de gente e agradeço pelos poucos amigos que consegui manter e aprofundar, como você.
Também fiz tanta amizade na Internet e hoje eu gosto tanto dos momentos que não estou na tela.