alternância de geração, subindo a serra e a bossa nova é foda
Sonhos envolvendo escola em geral têm aspectos de pesadelo. Você pode aparecer nu na frente da turma, ou então ser obrigado a voltar para aquele ambiente por não ter concluído alguma etapa da sua formação. Mas certa vez, no início da faculdade, sonhei com uma aula diferente que estava fazendo no meu antigo colégio. Na sala, as professoras de História e Biologia informavam que aquela era uma aula conjunta, que era possível uma abordagem biológica da História. Embora soubesse ser seguramente possível uma abordagem histórica da Biologia, o contrário me parecia temeroso. Levantei a mão, pedi a palavra (sim, eu era essa adolescente) e perguntei se elas não achavam que era problemático explicar a História das Civilizações a partir de características biológicas das pessoas, se aquilo já não tinha dado ruim no passado. Elas me garantiram que não teria nada de eugenista naquela apresentação, que o mais importante ali era que os alunos aprendessem que, tal qual as plantas, a gente também vive em alternância de gerações. Tal qual as plantas a gente se parece mais com nossos avós do que com nossos pais.
Não sou uma pessoa que se lembra muito dos próprios sonhos. Mas esse em específico sempre volta à minha memória. A última vez que isso aconteceu foi há poucas semanas, quando, em um show me flagrei mordendo a falange do meu dedo indicador. Uma pose que reconheço na minha avó quando está em uma conversa da qual não participa. Me reconheci também na irritação de não encontrar muitos batons em bastão, substituídos nas lojas e farmácias por batons líquidos. E, depois, na busca por um novo relógio depois que o meu quebrou e os relojoeiros me disseram que não era possível consertá-lo. Tudo o que eu queria era um modelo completamente simples e pouco inteligente. Apenas um relógio de ponteiros que uma senhorinha usaria.
Esse ano consumi muitos produtos culturais relacionados a Bossa Nova. Seria algo banal na vida de uma brasileira, não fosse o fato de que aos 16 anos, entrei numa loja qualquer de discos da Galeria do Rock em São Paulo e saí de lá com dois CDs. Um deles, chamado Garotozil de Podrezepam, gerou a minha principal referência sobre aquele gênero musical e por muito tempo eu achei que só ia gostar de Bossa Nova quando a Garota de Ipanema vestisse o macacão e fosse pra fábrica produzir tratores para o campesinato.
Uma parte desse interesse recente na música brasileira mais reconhecida fora do país acaba cristalizado na figura de um homem chamado João. Muita gente tem opinião sobre João Gilberto, que nesse ano teve até uma de suas primeiras músicas transformada em trend no TikTok. Entre ódios e amores, os dois melhores retratos da figura que chegaram até mim foram o filme Miúcha, a voz da Bossa Nova que recupera a voz da “ex-esposa de João, filha de Sérgio, irmã de Chico” com fotos, vídeos e leituras de suas cartas e diários. A historiadora e a feminista que habitam em mim saúdam as historiadoras e feministas que habitam que tá lendo isso aqui. O outro registro é o livro Ho-ba-la-lá - À procura de João Gilberto escrito por Marc Fischer. Com passagens até bem engraçadas, trata-se da história de um alemão que conhece a obra de João Gilberto através de um japonês e com um coração partido de pano de fundo resolve vir ao Brasil tentar encontrar o próprio João, à época já um homem recluso em seu próprio apartamento no Rio de Janeiro. Não paro de pensar na existência do capítulo Marcos Valle parece mesmo bem mais novo do que é.
Mas a minha obra favorita de Bossa Nova é, sem dúvida nenhuma, o álbum A Música Século XX de Jocy de Oliveira. Gosto de pensar que se o movimento tivesse nascido e crescido em São Paulo pelas mãos de mulheres, ele teria muito a oferecer: um conjunto de músicas cheio de desgraceiras como suicídio, assaltos, incêndios nas favelas numa vozinha suave avisando que o violão caiu no mar e morreu na areia. Infelizmente, há poucos lugares onde esse álbum pode ser encontrado (recomendo este link aqui), mas seguramente é uma obra única. Afinal, além de ter surgido em 1959 da cabeça de uma jovem de 22 anos, não se parece com nada mais do repertório da própria Jocy, lembrada como pioneira da música eletrônica no país. A Bossa Nova podia ser crítica, sim, e até mesmo muito irônica.
Babi, que surpresa boa me deparar com o seu texto trazendo a Bossa Nova como uma das pautas! Eu sou apaixonada pelo gênero. Na verdade, sou apaixonada pela brasilidade.
Na busca de ler mais sobre a cultura do nosso país e sobre os grandões da nossa MPB, eu já favoritei o livro que você indicou e confesso que já estou ansiosa para o ler pelo resumo que você trouxe. Também vou ouvir o álbum difícil de achar (coloquei no Spotify antes de me deparar com o seu link e realmente por lá ele não mora.).
O encanto que João Gilberto traz em sua música tem mesmo o poder de atravessar oceanos. Já dei meu follow na moça que aderiu a trendy com a música Bim Bom. Fiquei chocada com o conteúdo visualmente lindo e agradável.
Parabéns pelo texto! Ótimas indicações!
Incrível como às experiências são coletivas, já sonhei com o fato de demandas pendentes na escola também, de aparecer pelada em frente a turma, mesmo após anos tendo terminado o colégio. Hahahaha, será se tem uma explicação científica por trás ?