Dermi era nosso colega na repartição. Ele me lembrava um personagem de desenho animado, enquanto caminhava rápido pelo corredor. Quando conversava com a gente, tinha alguns tiques que fui descobrir anos mais tarde eram a manifestação do Mal de Parkinson com o qual convivia. Às quartas-feiras era mais fácil ver Dermi entre salas e corredores do prédio no centro da cidade. Ele ia de setor em setor convidando os funcionários para sua maior preocupação naqueles tempos: um curso sobre Direitos Humanos que ele mesmo organizava.
Ainda que se tenham ido já uns 15 anos, lembro-me de que o curso era no auditório, o local que recebia, geralmente, atividades da CIPA e treinamento de brigada de incêndio. O público interno da autarquia costumava aparecer para as palestras, talvez, em parte, pela insistência de Dermi. A cada semana, mudava o orador, e, com isso, o tema da fala. Cada um apresentava uma perspectiva sobre Direitos Humanos, fosse ela histórica, jurídica, política. Os palestrantes eram lideranças sociais, autoridades em suas áreas de estudo. Podiam ser advogados de movimentos sociais, religiosos da pastoral carcerária, uma liderança histórica do movimento por reforma agrária. Alguns deles, inclusive, perseguidos durante o regime militar.
Foi numa dessas aulas que alguém contou que Dermi era um sobrevivente da tortura impetrada pelo Estado brasileiro sob comando dos militares. Lembro de sentir uma espécie de choque, de pensar que alguém com quem eu convivia havia meses tinha uma vivência que eu jamais poderia imaginar. Com essa porta aberta, descobri posteriormente que o filho de meu colega havia sido uma das crianças que aparecem em relatórios da Comissão da Verdade por terem sido vilipendiadas e torturadas por agentes do Estado. No caso dele, antes de ter completado dois anos de idade.
Como centenas de milhares de brasileiros nas últimas semanas, fui ao cinema assistir a Ainda estou aqui (ou, como gostamos de falar, “O filme da Fernanda Torres”). Não sem razão desde então, Dermi, o meu colega de repartição pública, não sai de meus pensamentos. Minhas lembranças pessoais se misturam com a memória social. No filme, a memória da família em seus registros infindáveis em fotografias e películas de Super-8 é apenas uma das tramas da memória de um país que parece lutar por décadas para recalcar seus episódios mais perversos (por séculos, se levarmos em conta as heranças da escravidão). A memória, ali, é tema central no olhar de Eunice perante a televisão, deixando aquele nó na garganta para o público que se pergunta “será que ela ainda se lembra?”. Na família Paiva, coube ao único homem dos cinco filhos a perpetuação de suas histórias através de livros que narram a angústia do desaparecimento do pai, um papel habitualmente passado pelas mulheres através de gerações.
Dermi é um fato na minha memória, o colega que carregou no corpo, na família, na vida as marcas dum regime de exceção. Ele é também um fato na memória do país, com as violências que sofreu registradas em relatórios da Comissão da Verdade. A memória deveria ter nos ajudado a alcançar a justiça. Não foi o que aconteceu. Nem com Dermi, nem com a família de Rubens Paiva. O que não paro de pensar é que, na ausência de justiça, coube a eles a vingança. Os Paiva se vingam com um filme. Dermi se vingava todas as manhãs de quarta-feira, com um curso sobre Direitos Humanos no auditório da repartição.
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▶ Na toada do ânimo geral em assistir a um filme nacional quando ele ainda está nas salas de cinema, queria deixar duas sugestões de filmes brasileiros a que assisti entre outubro e novembro: Malu e Tia Virgínia. Os dois filmes tratam de assuntos um pouco parecidos. Aquela coisa de “quem cuida de quem cuida”, que — como estamos habituados a ver fora das telas — acaba sendo uma temática muito ligada à condição da mulher na sociedade e, no caso dos dois filmes, nas famílias. Filmes um pouco mais difíceis de achar do que Ainda estou aqui, mas que acho que vale o play se pingar em algum streaming diante de você.
▶ Em fevereiro de 2023, quando o filme Argentina 1985 estava em sua campanha pelo terceiro Oscar para o país vizinho, o promotor Luis Moreno Ocampo, personagem central na história, foi entrevistado no programa Roda Viva. Me fixo especificamente no momento em que ele é perguntado sobre a tríade Memória-Verdade-Justiça (ali pelos 32 minutos de programa). Com a anistia geral e irrestrita que foi negociada na redemocratização em um cenário de posições muito díspares de poder, acabou-se por aliviar de qualquer responsabilidade torturadores e golpistas da ditadura. A opinião de Ocampo, naquele mês de fevereiro, era a de que o mais importante para o Brasil é o julgamento do que aconteceu em 8 de janeiro daquele ano. Porque ali — cada vez temos mais elementos para entender isso — a democracia brasileira (ainda falha e incompleta) esteve em seu momento mais titubeante.