a melhor cidade da américa do sul, uma tarde no parque e a saga do vaqueiro
Quando ouço Gal Costa ou Rita Lee cantando “vivemos na melhor cidade da América do Sul”, eu penso logo em São Paulo. E a primeira cena que aparece no meu cérebro quando escuto essa frase é o olhar pela janela do trem do metrô entre as estações Armênia e Tietê. No sentido Tucuruvi, tendo à direita um shopping feito um trambolho, no centro o rio feito um esgoto a céu aberto, e à esquerda o maior terminal rodoviário do país. Desconfio que associo essa paisagem porque ela me era habitual na época em que comecei a ouvir Mutantes. Talvez algum dia esse verso caiu justamente nesse pedaço do caminho. E nada poderia significar menos “vivemos na melhor cidade da América do Sul” do que um dia nublado e esses seis segundos de travessia sobre a marginal. Só que, ao mesmo tempo em que esse verso, com essa imagem colada no meu cérebro, parece uma ironia ao invés de um elogio, é quase secretamente o que eu sinto por esse lugar. Chegar a São Paulo de avião, olhar a cidade de cima e pensar “que lugar horroroso; estou de volta para casa”. Foi entre construções que eu acho pavorosas e prédios que eu acho charmosos que eu vivi meus amores, meus desamores, que eu chorei dentro do transporte coletivo. As ruas da minha infância, as memórias das praças, das padocas, das escolas. Dos amigos que me conhecem há tempo o bastante para detestar muitas coisas em mim; e ainda assim seguem aparecendo em casa para tomar um café.
Montar boas playlists é uma arte. No último ano, dentre as minhas favoritas esteve a de Clarissa Xavier que propõe o materialismo dialético entre João Gomes e Belle & Sebastian com a icônica foto das prévias do PSDB paulista como capa. Simplesmente a junção do indie escocês dos anos 2000 com o jovem nome - em franca ascensão - da música brasileira; com uma sutil dose de caos.
Em 2022, estive muito perto de comprar ingresso para ver o povo de Glasgow se apresentar em São Paulo (nem comprei nem eles vieram), mas em 2023 matei minha vontade de ver João Gomes ao vivo. Um show no qual eu pude ouvir meu amigo Thiago Lima afirmar que eu estive certa quando disse a ele que João Gomes havia furado a bolha do piseiro. Mas vendo o show me pareceu que João fez muito mais do que isso.
João Gomes atualiza a Saga de um Vaqueiro, da banda Mastruz com Leite. Praticamente o Faroeste Caboclo do forró de tecladinho, a letra conta a história de um vaqueiro que, apesar de ser um campeão na vaquejada, era ralé para o pai da amada. O amor impossível termina em separação e - spoiler? - eles se reencontram muitos anos depois quando ele é derrotado por um novo vaqueiro campeão. O coração partido é remendado com a notícia de que o jovem era seu filho da época em que o casal desejava se casar.
Apesar de ser um gênero muito popular e responsável por um traço fundamental da cultura brasileira (a de fazer excelentes versões de músicas internacionais), o “forró de tecladinho” não entrou as festas de forró sudestinas com bandas que levam a formação clássica de sanfona, zabumba e triângulo. Se o Mastruz com Leite é um dos grandes nomes desse tipo de música, João Gomes parece atualizá-la com batidas que lembram os gêneros urbanos do funk do brega funk, e, como já falou em entrevistas, do rap (do qual é muito fã). Tudo isso com uma voz grave que faz lembrar a voz do baião de Luiz Gonzaga, e fazendo ótimas versões de Rihanna.
Ao contrário dos sertanejos dos anos 1990, João não canta sobre o dia em que saiu de casa. Se saiu de casa, foi para colar na vaquejada, mas segunda-feira, ele avisa, estará de volta. Ele ficou e, de Serrita, em Pernambuco, atualiza as sagas dos vaqueiros e as histórias sertanejas no século XXI.
texto seu chega sempre como brisa gostosa na cara 💖